Sobre a “Libertação”/“Depuração” na Bélgica "libertada" e "depurada" através de assassinatos e prisões em nome da justiça, da democracia e dos direitos do homem:
«Logo a 3 de Setembro, por volta da meia-noite, justiceiros improvisados querem prender este George Remi, de quem pouco sabem; apresentam-se à sua porta, mas rapidamente se vão embora. A 7, o desenhador é interrogado e depois libertado. Dois dias mais tarde, a Segurança do Estado faz uma busca a sua casa, onde não encontra nada de comprometedor, e leva-o depois para o comando central da polícia de Bruxelas, alcunhado Amigo, como o hotel mesmo em frente. Hergé cruza-se aí com Robert Poulet com quem troca “um sorriso valente como se impunha”. (Robert Poulet, «Adieu, Georges», em Rivarol, 18 de Março de 1983.). Passa apenas uma noite na prisão, juntamente com uma dezenas de outros proscritos, entre os quais Paul Herten, o director do Nouveau Journal, que será fuzilado pouco depois.
Tal como Hergé conta depois a Nobert Wallez, que também tem a sua conta de aborrecimentos:
“Depois de ter sido interrogado, fui libertado; no dia seguinte vieram prender-me, a PJ desta vez. Interrogado. Posto em liberdade. Três dias mais tarde, os MNB, metralhadora em punho, cercaram a casa. Interrogado, posto em liberdade. Dois dias depois, apareceram as FFI. Interrogado, posto em liberdade. Desde então, mais nada. Como existem agora uma dez organizações semelhantes, pensava que iam aparecer à vez para me prender, mas não, acabou assim, sem motivo aparente, e desde então deixaram-me em paz, moralmente diga-se. trabalho, como de costume, e isolo-me cada vez mais, ajudado por Germaine, esta companheira admirável cuja coragem, lucidez e nobreza foram para mim um verdadeiro apoio no meio de todas estas vilanias.” (Carta de Hergé ao padre Nobert Wallez, Setembro de 1944.).
«Entretanto, os legítimos proprietários reapossaram-se dos jornais e promulgaram medidas contra os colaboracionistas. A 7 de Setembro são expostas as decisões do Alto Comando Aliado: qualquer pessoa “que tenha contribuído para a redacção de um jornal durante a Ocupação, independentemente da rubrica a que tenha estado afecta, encontra-se momentaneamente interdita do exercício da sua profissão. Os repórteres fotográficos são objecto da mesma medida.” (Le Soir, 8 de Setembro de 1944.).» (pp.191/192)
«Tinha amigos jornalistas que ainda hoje acredito que eram completamente puros e nunca estiveram a soldo do inimigo. E quando vi algumas dessas pessoas minhas conhecidas, cujo patriotismo pressuroso também conhecia, serem condenadas à morte e algumas mesmo fuziladas, deixei de perceber tudo de tudo. Foi uma experiência de intolerância absoluta. Foi terrível, terrível!» (p. 194)
«Uma coisa é certa: os tempos são de justiça célere. Na Bélgica, mais de seiscentas mil pessoas foram incomodadas durante os anos que se seguiram à Libertação; no fim, os tribunais condenarão um pouco mais de quarenta mil por “incivismo”, palavra que na Bélgica designa os colaboracionistas. O pior são as denúncias arbitrárias e as vinganças pessoais, tantas como durante a Ocupação. É por temer os excessos causados pelo ódio que o auditor-geral, Walter Ganshof van der Meersch, “arquitecto e coordenador da política de repressão”, fez questão em confiar a Depuração oficial apenas aos tribunais militares.» (p. 196)
«Agora que a revista Tintim existia, outras manigâncias tentavam impedi-la de continuar. (…) Em 1946, a União dos Jornalistas era extremamente poderosa. Conseguia fazer reinar um ostracismo inimaginável sobre todos os que tinham publicado durante a guerra. O comunista Fernand Demany é um dos ferrabrás mais regulares dos jornalistas clandestinos. Segundo ele, a criação da revista Tintim “despertará penosas recordações em todos os que se lembrarem do Le Soir roubado para o qual Hergé contribuiu com o seu incontestável talento”. Mas não é o único a indignar-se. A revista católica La Cité Nouvelle não é menos virulenta. É manifesto que Hergé perdera parte dos seus apoiantes tradicionais:
“Não apenas o desenhador boche não foi incriminado, como é hoje autorizado a publicar um Tintim reabilitado, com o contingente de papel oficial. Incívico, este traidor que serviu os desígnios do inimigo por quantias substanciais, pode retomar livremente no seu lápis e repor no comércio a sua pequena brigada de Hitlerjugend… Será necessário que os filhos dos fuzilados e dos prisioneiros políticos venham ensinar alguma decência a este indivíduo que não hesitou em utilizar em benefício do inimigo o divertimento inocente das crianças? M. Tintim e a sua Hitlerjugend, o lugar do vosso patrão é na prisão de Saint-Gilles.”» (pp. 209/210)
Sobre a censura/politicamente correcto:
«É preciso que se diga que os ataques contra Hergé nunca pararam: o sucesso cada vez maior dos seus álbuns tem tendência a acirrá-los. Uma das críticas mais virulentas, e mais injustas, é publicada em 1962 na revista Jeune Afrique, assinada apenas com as iniciais G.R.:
“Na secção dos livros, os dezanove álbuns de Hergé foram reis e senhores. Traduzidos em seis línguas, excepto um, o primeiro da colecção, Tintim no País dos Sovietes, que os tintinólofos vão consultar à biblioteca nacional e que não será nunca (como é óbvio) reeditado. Nele, o autor manifesta nitidamente tendências que lhe valeram ser interditado por colaboracionismo, até 1947.
Moderou-se depois disso, mas uma pequena chamada de atenção continua a aparecer sub-repticiamente.
O nome dos “Maus” é só revelador: Salomon Goldstein, Rastapopoulos, o xeque Babe l Ehr, o marechal Plekszy-Gladz; o aspecto físico a mesma coisa; nariz encurvado de uns, tez colorida dos outros (aqueles a quem o capitão Haddock chama «colocíntida cor de antracite), faces mongóis dos terceiros. Quanto aos temas abordados, estes cantam as aventuras de Tintim, menos repórter que justiceiro, que detective, que super-homem”.
O autor esforça-se de seguida por provar, não sem má-fé, que os álbuns de Tintim são completamente reaccionários. Até a denúncia do regime borduro, em O Caso Girassol, se torna motivo de acusação…
Este artigo, se bem que um dos mais agressivos, está longe de ser o único. Pouco tempo antes, Le Canard enchaîné incitava os pais a desconfiarem de “«este herói” para quem os Brancos são todos brancos e os Pretos, todos pretos. Se os vossos filhos devem ser sensatos como as imagens, evitem que estas sejam do desenhador Hergé».
Na Casterman, assustam-se: estes ataques arriscam-se a penalizar a série, sobretudo junto dos pedagogos e dos bibliotecários. Desde o início de 1969 que Tintim no Congo, o álbum mais “sensível”, atravessa um longo período de desgraça: o livro não é proibido, mas o editor não o reimprime apesar dos pedidos constantes de Hergé. Esta censura que não se assume irrita-o profundamente. Tanto mais que este “pecado de juventude” parece-lhe muito venial: aquando da colorização em 1946, o álbum foi retocado e os pormenores escandalosamente colonialistas foram eliminados. Tintim já não dá aulas de geografia sobre “o vosso país, a Bélgica”; contenta-se com a neutralidade de aula de aritmética.» (p. 358/359)
«Sempre sob a pressão de Casterman, Hergé revê vários dos outros álbuns para os tornar “politicamente correctos” antes do tempo. Entre duas tiragens de Carvão no Porão, modifica o estilo demasiado trapalhão de uma carta do emir Ben Kalish Ezab e elimina “petit nègre” dos desgraçados negros destinados à escravatura. Doravante exprimir-se-ão da mesma maneira que nos romances traduzidos do americano, os de Chester Himes, por exemplo: dizem “M`sieur” em lugar de “Missié”. Tal como Hergé explica a um dos seus correspondentes: “Cedi aos insistentes pedidos dos meus editores, preocupados em gerir as susceptibilidades das gentes do terceiro mundo, e mais ainda dos seus defensores em Paris e em Bruxelas.» (Carta de Hergé a Jacques Langlois, 6 de Junho de 1969.).
«Revê Tintim no País do Ouro Negro de forma muito mais profunda. Na perspectiva da tradução inglesa, Hergé “curto-circuita os terroristas judeus e os ocupantes ingleses para deixar em campo apenas um emir e o seu rival”. Para evitar mal-entendidos, diz ele: na altura em que esta história apareceu em Inglaterra, em 1971, os jovens leitores já não sabiam que o exército inglês tinha ocupado a Palestina e lutado contra os grupos sionistas.
“Então, modifiquei o álbum. E creio sinceramente que ganhou em clareza, (…) porque se torna mais intemporal. Pode sempre existir uma rivalidade entre dois emires, enquanto, na primeira versão, a ocupação britânica da Palestina era muito localizada no tempo. Não é portanto para evitar a política, é para que se compreenda melhor: mais uma vez a preocupação da legibilidade.”
Diga Hergé o que disser, fazer desaparecer de Tintim no País do Ouro Negro qualquer alusão aos judeus (anti-semitismo), é como que uma tentativa ingénua e desastrada de limpar a Estrela Misteriosa. Mas é, fundamentalmente, também o sinal de uma perda de identidade. Tudo se passa como se o autor tivesse passado a ignorar um dos aspectos essenciais da su obra: enquanto nos anos 30 As Aventuras de Tintim tinham sido concebidas sob pressão da actualidade (a ponto de Hergé fazer disso, na sua carta a Leblanc de 1952, uma das causas do seu sucesso), agora eliminam-se as marcas demasiado explícitas da historicidade.» (p. 361)
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