23.4.09

Nun`Álvares por António Sardinha


NUN`ÁLVARES

Foi ontem dia de Nun`Álvares pela comemoração nacional do seu nascimento. Essa figura erguida, uma das maiores da nossa história, é na sua dupla posição de guerreiro e de santo a incarnação perfeita da alma de Portugal. Ninguém como ele teve o gládio para manter a justiça e para defender a terra. Ninguém como ele soube o poder do espírito quando se recolhe em Deus e não confia senão na força superior duma aspiração imortal! Entre a Espada e a Cruz decorreu feliz e gloriosa a existência passada da nossa Pátria. À Espada e à Cruz nós agradeceremos ainda o acto de milagre que nos há-de restituir ao caminho perdido da nossa vocação de povo.
Sobre Nun`Álvares pesa a ignorância imperdoável de quanto ele nos merece como herói representativo da nacionalidade. Oliveira Martins surpreendeu-o em acasos brilhantes do seu brilhantíssimo talento. Mas a compreensão total do grande Condestabre não a soube abranger o historiador, enevoada a sua inteligência pelas piores bastardias filosóficas. Um aspecto há, notável, no livro de Oliveira Martins. É aquele em que o carácter do herói se destaca como formado moralmente pela influência mística da Cavalaria nos seus votos permanentes de sacrifício e de castidade. Oliveira Martins subtraiu-se assim, pela visão do que fora a Idade Média, às ideias dominantes no seu tempo, que consideravam os fenómenos místicos, debaixo da influência intelectual de Charcot, como puras manifestações patológicas. De resto, a Vida de Nun`Álvares vale mais como subsídio para a biografia mental do seu autor do que propriamente como o estudo que Portugal deve ao extraordinário patrono da nossa independência.
Nas Crónicas, — na singeleza gótica das suas páginas, é que nós podemos sentir bem Nun`Álvares em toda a sua plenitude e em todo o alvoroço do seu coração de Cavaleiro e de Monge. É um compromisso de honra, cujo não cumprimento nos cobre a nós de vexame, redimirmos Nun`Álvares das falsificações literárias em que o seu nome se vê corrompido e corrompida a sua acção virtuosa e salvadora. Junqueiro, num panfleto que é desforra atávica da sua ascendência israelita contra a nossa disciplina católica e monárquica, serviu-se do Condestabre como braço de anátema que o ódio político do poeta precisava de armar na indignação retórica dos seus verbalismos truculentos. Depois, numa página vergonhosa, um outro homem de letras tentou reduzir a estatura do Condestabre à craveira deplorável dum impulsivo sem grandeza consciente, quando não dum doido acabado e simples.
Era este precisamente o ponto sobre o qual eu desejaria insistir, não só para lavar a memória de Nun`Álvares do sacrilégio que a pretendeu enxovalhar, mas para demonstrar como cientificamente as afirmações do senhor Júlio Dantas — é ao senhor Júlio Dantas que me refiro, — são erróneas e em todo indignas de quem conviva as coisa elevadas da inteligência. Sei que não é assunto para o debate rápido duma pequena nota. Mas enunciando-o, embora de leve, não fujo a declarar, a respeito do famoso libelo que uma fantasia censurável em quem se supõe fazer obra de história colocou na boca do Cardeal do Diabo durante o decurso da beatificação de Nun`Álvares, que ele não passa, o referido libelo, de um reflexo cabotino dos ensinamentos da Salpêtriere acerca do misticismo e da natureza das suas personificações. Ora o desenvolvimento dos estudos psicológicos modificou completamente as observações de Charcot. Ninguém como os místicos resolve e domina os conflitos da nossa vida moral, a que num livro recente, L`hérédo, com tanto vigor de expressão Léon Daudet chamou o «drama interior».
Inegavelmente, desde que a «terceira experiência» ou «experiência religiosa» foi instituída pelas necessidades indagadoras da própria psicologia, não é lícito já pensar-se acerca dos Santos como pensaria Mr. Homais alinhando os botões da sua botica em Ruão. William James abriu o caminho. E hoje já não tem conta os trabalhos que, sem preocupações apologéticas, nos ajudam debaixo dum exclusivo critério experimental, a aproximar os Santos, como realidades vivas, da concepção sobre-humana que neles nos apresenta a Teologia.
Nun`Álvares encontra-se psicologicamente dentro desse juízo sereno e reabilitador. Nem ele é o histérico, que um golpe de efeito sobre o público procurou inculcar como tal, nem a sua genealogia, por carregada de estigmas que se nos revelasse, constituiria motivo irremovível para uma condensação. Um médico ilustre, — o Dr. Ch. Fiessinger, — demonstra-nos que o inconsciente se educa e que a religião é precisamente o seu maior educador. A igual conclusão chegou igualmente Léon Daudet. De facto, nós não ignoramos que Santo Inácio de Loiola era um colérico, S. Francisco Xavier, um ambicioso, e o Povorello de Assis, um gastador. A disciplina religiosa interveio. E do colérico saiu o disciplinador admirável dos Exercícios Espirituais, do ambicioso o evangelizador das Índias e do gastador o esposo amorável da Senhora Pobreza, beijando as chagas dos leprosos e cantando ao Senhor Nosso Deus o louvor de todas as criaturas.
A Igreja exige para a canonização, mais que os milagres, o «exercício heróico» das virtudes cristãs. O «exercício heróico» das virtudes cristãs pressupõe a afirmação da vontade. Se os Santos realmente não passassem duma floração hospitalar, de degenerados, mordidos de raivas epilépticas e com hiatos frequentes de personalidade, a vontade desertá-los-ia, como abúlicos inevitáveis que seriam. Escuso de ressaltar, a unidade de vida e pensamento característica dos Santos, que são essencialmente gigantes da vontade. A Santidade é assim uma introspecção activa e constante do soi — como diria Daudet, sobre o moi, isto é, da parte deliberativa e consciente do nosso ser sobre o tumulto de instintos em que a nossa autonomia espiritual quase sempre naufraga.
Enganou-se, pois, o senhor Júlio Dantas, — e enganou-se, não só como escritor mas até como médico, ao assegurar a degenerescência de Nun`Álvares. A unidade da sua existência moral é comprovada pelo testemunho das Crónicas. O epiléptico não se descobre nele, porque a vontade no Condestabre é permanente e robusta. Há uma continuidade de acção e de pensamento em Nun`Álvares que nos enche de assombro e dissipa toda e qualquer suspeita de desequilíbrio. Violento e sanguinário? Mas eu inutilizo, logo que o senhor Júlio Dantas o deseje, a sua acusação? Então por ser casto? Mas hoje a medicina reconhece na castidade uma virtude higiénica. Talvez porque no desfiar dos anos se recolheu a um convento e vestiu a estamenha carmelita? Precisamente a isso responde a psicologia com a «terceira experiência», verificando no misticismo, quando superior, um poderoso desenvolvimento da nossa individualidade.
Muito gostaria de me alongar com o interesse que a questão legitimamente suscita. Raspando de sobre o Condestabre esse pingo de lama que, afinal, nem o salpicou, os meus votos são para que a Festa a Nun`Álvares se torne um dos objectivos mais ardentes do espírito patriótico. Adoremo-lo nos altares e aclamemo-lo nas praças! Nun`Álvares mostra-nos com a espada terminando na cruz que o patriotismo é uma virtude eminentemente cristã. Como cristãos não consintamos jamais que nos roubem o Condestabre, traindo-o e abastardando-o numa espécie de culto maçónico, tal como o que teima apagar Camões o poeta do renascimento católico, fiel à Igreja e ao sentimento ortodoxo emanado do concílio de Trento.
Juntemos os nossos esforços para que Nun`Álvares tenha o seu dia, — mas o seu dia como Santo e como Herói, não separando nunca as duas faces da sua alma admirável, que só se completam integradas uma na outra.

António Sardinha
In «Na feira dos mitos», cap. Nun`Álvares, 2.ª edição, Edições Gama, 1942, pp. 165/166/167/169/170.

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