O líder judeu que foi condecorado pelos nazis
Em Setembro de 2005, o historiador brasileiro e investigador no Museu do Holocausto em Jerusalém, Avraham Milgram, lançou uma pergunta que se tornou fundamental para os historiadores António Louçã e Isabelle Paccaud: "Onde estão as provas?", questionou ele, em declarações à Pública (edição de 25/09/2005).
Cientista, economista, professor, escritor e investigador, Amzalak possuía um vasto e impressionante currículo: recebeu doutoramentos honoris causa em diversas universidades nacionais e estrangeiras, foi reitor da Universidade Técnica de Lisboa (UTL), presidiu à Associação Comercial de Lisboa, foi membro de várias associações académicas de renome, integrou conselhos de administração de importantes empresas privadas, foi agraciado com a comenda da Legião de Honra francesa e com a Ordem do Império Britânico. E era amigo de Salazar, segundo a historiadora Irene Pimentel.
Através de uma troca de correspondência entre Isaac Weissman, refugiado e representante oficioso do Relief Committee for Jewish War Victims (RELICO) em Lisboa, e o Congresso Mundial Judaico (WJC, na sigla em inglês), de 1943, Louçã descobriu que Amzalak tivera "ligações perigosas" com o regime nacional-socialista de Hitler: recebera a Ordem de Mérito de Primeira Classe da Cruz Vermelha Alemã em 1935 e, enquanto co-proprietário do jornal O Século, aprovara no mesmo ano a publicação de uma separata de dez páginas dedicada à "nova Alemanha".
As reacções da CIL e de alguns historiadores a esta "revelação" não se fizeram esperar. No artigo já citado da Pública, antigos dirigentes da comunidade israelita consideraram as suspeitas como "inverosímeis" e "caluniosas" e anunciaram logo um pedido de investigação ao WJC. Até hoje o resultado dessa investigação não foi tornado público. Mas o silêncio que entretanto descera sobre o assunto foi quebrado no final do ano passado, quando surgiu nas livrarias, com a chancela da Fim de Século, O Segredo da Rua d"O Século - Ligações perigosas de um dirigente judeu com a Alemanha nazi (1935-1939), resultado de uma investigação conjunta feita em Inglaterra, Israel, Suíça, Alemanha, EUA e Portugal (apesar dos pedidos de Isabelle Paccaud, não lhe foi permitido o acesso aos arquivos da CIL).
Neste livro são contados todos os passos que levaram à condecoração de Amzalak pelo Governo nazi (as provas documentais estão em anexo), faz-se uma análise sistemática das edições de O Século entre 1934 e 1939, dá-se a conhecer a política de Amzalak em relação aos refugiados judeus (1933-1945) e é ainda abordada a história dos judeus perante a vaga fascista europeia.
Para entender o contexto em que Moses Amzalak é condecorado não se pode escamotear a sua influência na linha editorial de O Século. Que entre 1926 e 1939 sofreu diversas viragens, diz Louçã ao P2: foi, desde cedo, pró-salazarista (empenhou-se pessoalmente em promover a nova figura da política nacional) e "simpatizava" com o fascismo italiano e com o clerical-fascismo austríaco; em 1935, porém, todos os fascismos se tornaram desinteressantes menos o alemão, que foi tomado pelo diário como o grande modelo, e a Itália só voltou a ter relevo quando se reconciliou com a Alemanha; finalmente, em 39, ano em que Amzalak vendeu a sua quota, eram notórias as reservas à política alemã, cuja glorificação deixou praticamente de existir quando aconteceu o Pacto Germano-Soviético, em finais de Agosto.
Basta atentar nos documentos da embaixada britânica em Lisboa para apurar que foi Amzalak, e não João Pereira da Rosa e Carlos Oliveira, co-proprietários do jornal, o primeiro responsável pela linha editorial. "É a ele que se referem todos os documentos e quando se trata de condecorar alguém é sempre ele o escolhido", afirma o historiador. Para o chefe da Legação Alemã em Lisboa, Oswald von Hoyningen-Huene, a orientação germanófila do periódico era "obra" do dirigente da CIL. Por isso, foi Huene quem propôs ao Governo alemão a condecoração de Amzalak. Fê-lo através de uma carta dirigida ao Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) alemão, datada de 19 de Fevereiro de 1935, precisamente um dia depois da publicação, n"O Século, da separata de propaganda nazi - na primeira página surgem imagens da cruz suástica, uma fotografia de Hitler e outra de Huene, e um editorial assinado por este último. Como se vê através da leitura da carta (em fac-símile nos anexos do livro), não foi apenas a separata que influiu na proposta de Huene. A segunda razão que é referida pelo diplomata prende-se com a criação, em Janeiro de 35, do Gabinete de Documentação Económica e Financeira Alemã, uma iniciativa de Amzalak, que dirigia o Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (ISCEF), e de João Azevedo Neves, reitor da UTL. Na lista de 11 portugueses distinguidos pelo Governo alemão em 1935, apenas Amzalak e Azevedo Neves receberam a mais importante condecoração.
Na missiva ao MNE, Huene explicou os motivos da sua proposta, notando que Amzalak e Neves haviam promovido uma "acção meritória nas relações germano-portuguesas". Tendo conhecimento da retórica violenta (e de alguns boicotes a lojas) que já era propagada na Alemanha contra os judeus, o chefe da Legação alemã fez questão de referir, a título "confidencial", que Amzalak era judeu. Mas, logo a seguir, fundamentou a sua iniciativa: "Como ele é director do Instituto [ISCEF] em que se encontra a Sala de Estudos [Gabinete de Documentação Económica e Financeira Alemã], como tem uma influência determinante nesta instituição e como desempenha um papel político muito importante na qualidade de proprietário do diário O Século, eu consideraria muito inconveniente ignorá-lo, desde que não haja objecções de princípio." E acrescentou que com a carta seguia um artigo do judeu sobre o plebiscito do Sarre. "Não só tornou possível a criação da Sala de Leitura, mas também interveio a nosso favor no jornal dele", escreveu.
A este respeito, António Louçã diz que, sendo a condecoração o resultado de um "relacionamento exploratório" entre a Legação alemã e Amzalak, a distinção, atribuída pelo Governo nacional-socialista através da Cruz Vermelha Alemã (organização que vetava a entrada a judeus), foi um "instrumento de estímulo" para que o líder judaico prosseguisse na defesa das políticas alemães. "A condecoração situa-se cronologicamente no período de quatro anos [1935-39] em que podem ser documentadas as relações de Amzalak com a Legação. Não foi um prémio por esses quatro anos, mas um começo", explica o historiador.
O pedido da "miniatura"
A atribuição da Ordem de Mérito de Primeira Classe da Cruz Vermelha Alemã a Amzalak aconteceu em Julho de 1935, dois meses antes da aprovação das leis de Nuremberga. Será porventura descabido pensar que o presidente da CIL desconhecia a proclamação das leis anti-semitas. Por isso, afigura-se mais espantoso o facto de Amzalak ter pedido ao seu amigo Huene uma "miniatura" da condecoração em 1937, quando a repressão contra os judeus tomava proporções inauditas. Huene voltou então a escrever ao MNE, a 8 de Fevereiro, dando-lhe conta da pretensão de Amzalak. Três meses depois, o reputado português recebeu a "miniatura", acompanhada por uma carta de Huene, escrita em francês. Nela pode ler-se: "Permita-me que aqui lhe envie essa miniatura, pedindo-lhe que queira aceitá-la em lembrança da nossa colaboração."
Em O Segredo da Rua d"O Século, Louçã e Paccaud publicaram uma fotografia, datada de 14 de Maio de 1937, em que Amzalak discursa numa conferência à qual presidiu Huene. Os historiadores supõem (é quase impossível observar isso a olho nu) que o dirigente judeu tenha usado na lapela a miniatura da condecoração que recebera dois anos antes.
Não lhes tendo sido permitido o acesso aos arquivos da CIL, Louçã e Paccaud desconhecem as reacções da comunidade israelita à condecoração do seu líder pelo III Reich e à separata d"O Século. Apesar de o diário não ter publicado uma linha sobre a condecoração, o tributo do regime nazi foi tornado público logo em 1935 pelo jornal Pariser Tageblat, dirigido por alemães antinazis que viviam em França.
A denúncia foi feita num artigo de página inteira, no qual Amzalak é acusado de ter pactuado com a publicação de propaganda nazi e anti-semita no seu jornal, apesar de ser judeu e presidente da CIL.
O feroz artigo do Pariser Tageblat parece não ter surtido qualquer efeito junto do Congresso Mundial Judaico (WJC). O silêncio desta organização manteve-se ao longo de mais de 15 anos. Só em 1951 a organização se pronunciou sobre o caso numa acta que confirma que o Congresso acreditou nas denúncias feitas por Isaac Weissman em 1943. "A acta prova também que o WJC nunca quis tornar públicas essas acusações", nota Louçã, "e que existiu de facto um diferendo grave que quase levou ao congelamento das relações com a CIL".
O documento de 1951 serviu, porém, para restabelecer a ligação entre o WJC e a CIL e, segundo Louçã, isto mesmo poderá ser justificado dentro do contexto das reabilitações operadas no pós-guerra devido à Guerra Fria. "Este foi um dos aspectos mais intrigantes da investigação. A imunidade de que Amzalak gozou talvez se possa explicar pelo clima maccartista do pós-guerra. Entre 1935 e 39, O Século é pró-alemão, apoia a ocupação da Renânia e o plebiscito do Sarre e permite-se mesmo a dar lições à política social do corporativismo português, invocando o modelo alemão", explica Louçã.
Moses Bensabat Amzalak terá sido o único dirigente judeu a receber uma condecoração da Alemanha nazi (a historiografia não refere outro caso semelhante). "Amzalak é ainda visto como um herói e isso permite passar uma esponja por tudo o que está para trás. O que defendemos é que o que está para trás nunca pode ser esquecido", frisa Louçã ao P2.
Na introdução ao livro de Louçã e Paccaud lê-se que a investigação histórica tem, por vezes, algo em comum com as revoluções: "Uma e outras derrubam monumentos."
Maria José Oliveira
In Público, 14 de Março de 2008, págs. 16/17.
2 comentários:
Excelente post. Acumulam-se as provas da colaboração entre nazis e sionistas (para a construção de Israel).
O Arquivo do Camarada Nonas é precioso.
Camarada, continue!
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