«Foi a meio da tarde de domingo, 8 de Setembro de 1974, que os portugueses do que então era ainda Portugal Metropolitano se aperceberam da gravidade do que estava a passar-se em Lourenço Marques, onde, na véspera, um grupo de jovens tomara o Rádio Clube de Moçambique, transformando-o em “Voz de Moçambique Livre”: com adesão espontânea de milhares de pessoas sem distinção de milhares de pessoas sem distinção de raça ou de credo político ou religioso, com a participação de representantes de todos os partidos políticos ali criados após o “25 de Abril”, com a colaboração, até, de antigos chefes da guerrilha antiportuguesa, essa “Voz de Moçambique livre” erguia-se contra a miserável subserviência do governo de Lisboa face aos agentes do imperialismo marxista e, em especial, contra a entrega de Moçambique à Frelimo, acabada de firmar em Lusaka.
Mas nessa já quase outoniça tarde de Setembro, Costa Gomes e Vasco Gonçalves puseram a funcionar a mais espantosa de desinformação que até hoje se conhece neste desinformado país: sobre os ocupantes do Rádio Clube foram lançadas as mais sórdidas e mais falsas acusações que poderiam imaginar-se; todas as notícias vindas de Lourenço Marques foram cortadas ou manipuladas, toda a verdade foi distorcida até ficar irreconhecível; quando, ao cabo de 72 horas de resistência admirável, os ocupantes do Rádio Clube traídos por todos quantos lhes deveriam dar apoio, se viram forçados a desistir do seu patriótico intento, a opinião pública metropolitana mergulhou na total ignorância do que acontecera nesses três dias históricos e do que logo depois viria a acontecer – uma chacina monstruosa.
Decorridos mais de três anos essa ignorância é hoje quase tão densa como então, quebrada que foi apenas pela obra de Ricardo Saavedra “Aqui Moçambique Livre”, breve e empolgante inventário daqueles acontecimentos, que se editou em Joanesburgo mas que as amplas liberdades do PREC não permitiram se divulgasse devidamente. E acontece, deste modo, que de todos os terríveis casos da “descolonização exemplar” o do “7 de Setembro” é, sem dúvida, o menos conhecido.
Bastaria isso para conferir um extraordinário interesse ao livro de Clotilde Mesquitela agora vindo a lume. É o relato, de momento a momento, dessas inesquecíveis 72 horas que, no justo dizer de Tavares de Almeida, prefaciador da obra, “foram vividas na plenitude da esperança e da angústia, na euforia da vitória e no sombrio desespero da derrota – da derrota de Portugal vitoriado até ao assombro pelas vozes de pretos e brancos, defendido até à exaustão também por pretos e brancos”. E é um relato que não oferece contestação – tal como o diário de bordo de um navio naufragado, tal como a “caixa negra” de um avião despenhado – pois a sua Autora não precisou de se documentar para escrever: esteve lá, do princípio ao fim, ao lado do marido e dos filhos, correndo todos os riscos, assinalando todos os factos por simples força das circunstâncias, pensando em tudo menos em escrever um livro. Por isso mesmo, quando, já no exílio, se decidiu a escrevê-lo, chamando-lhe, significativamente “memórias da revolução”, o seu trabalho resultou pleno de espontaneidade e de autenticidade, alma a sangrar-lhe ainda como Portuguesa, Mulher e Mãe.
“Moçambique 7 de Setembro” é uma obra relevante na já vasta bibliografia escalpelizadora da tal “descolonização exemplar”, de que hoje fingem indignar-se alguns dos próprios culpados mais directos. É-o não só pelas páginas dedicadas aos acontecimentos decorridos dentro ou fora do Rádio Clube de Moçambique, mas igualmente por aquelas em que se historiam, com simples mas flagrantes anotações, os antecedentes de ordem pessoal ou factual que levaram ao trágico epílogo de todos nós conhecido.
Em boa verdade, não sei o que será mais arrepiante neste livro: se a descrição do terror que se abateu sobre Lourenço Marques depois das autoridades haverem entregue o microfone do Rádio Clube de Moçambique a um militante da Frelimo, se a revelação – corajosa e implacável – de todo um cortejo de abdicações vergonhosas, de traições imperdoáveis, de omissões pusilânimes – e mesmo de ingenuidades – e mesmo de ingenuidades incríveis. De qualquer modo, é um livro para ler atentamente, retendo, por igual, as imagens negativas e positivas que dele se contêm, da mais repulsiva delinquência ao mais abnegado heroísmo, pois de ambas as espécies é feita a verdade.
Não cabe, é claro, no âmbito desta crónica, procurar responder a perguntas que a leitura do livro de Gonçalo Mesquitela inevitavelmente nos propõe: tinha o heterogéneo movimento do “7 de Setembro” capacidade para deter Moçambique no caminho do abismo? Teria, caso lhe não faltassem os apoios prometidos, conseguido alterar o curso da História? Estas ou outras indagações nada têm a ver com a obra em causa, que é, sobretudo, um documento imprescindível para quem queira conhecer a verdade dos factos, mas um documento onde a frieza e a objectividade da análise não podem – não poderiam nunca – ignorar o espírito de gesta que animou aqueles “rebeldes” de uma “revolução sem armas”, os últimos que souberam honrar em Moçambique a bandeira da Pátria destruída.
Mas nessa já quase outoniça tarde de Setembro, Costa Gomes e Vasco Gonçalves puseram a funcionar a mais espantosa de desinformação que até hoje se conhece neste desinformado país: sobre os ocupantes do Rádio Clube foram lançadas as mais sórdidas e mais falsas acusações que poderiam imaginar-se; todas as notícias vindas de Lourenço Marques foram cortadas ou manipuladas, toda a verdade foi distorcida até ficar irreconhecível; quando, ao cabo de 72 horas de resistência admirável, os ocupantes do Rádio Clube traídos por todos quantos lhes deveriam dar apoio, se viram forçados a desistir do seu patriótico intento, a opinião pública metropolitana mergulhou na total ignorância do que acontecera nesses três dias históricos e do que logo depois viria a acontecer – uma chacina monstruosa.
Decorridos mais de três anos essa ignorância é hoje quase tão densa como então, quebrada que foi apenas pela obra de Ricardo Saavedra “Aqui Moçambique Livre”, breve e empolgante inventário daqueles acontecimentos, que se editou em Joanesburgo mas que as amplas liberdades do PREC não permitiram se divulgasse devidamente. E acontece, deste modo, que de todos os terríveis casos da “descolonização exemplar” o do “7 de Setembro” é, sem dúvida, o menos conhecido.
Bastaria isso para conferir um extraordinário interesse ao livro de Clotilde Mesquitela agora vindo a lume. É o relato, de momento a momento, dessas inesquecíveis 72 horas que, no justo dizer de Tavares de Almeida, prefaciador da obra, “foram vividas na plenitude da esperança e da angústia, na euforia da vitória e no sombrio desespero da derrota – da derrota de Portugal vitoriado até ao assombro pelas vozes de pretos e brancos, defendido até à exaustão também por pretos e brancos”. E é um relato que não oferece contestação – tal como o diário de bordo de um navio naufragado, tal como a “caixa negra” de um avião despenhado – pois a sua Autora não precisou de se documentar para escrever: esteve lá, do princípio ao fim, ao lado do marido e dos filhos, correndo todos os riscos, assinalando todos os factos por simples força das circunstâncias, pensando em tudo menos em escrever um livro. Por isso mesmo, quando, já no exílio, se decidiu a escrevê-lo, chamando-lhe, significativamente “memórias da revolução”, o seu trabalho resultou pleno de espontaneidade e de autenticidade, alma a sangrar-lhe ainda como Portuguesa, Mulher e Mãe.
“Moçambique 7 de Setembro” é uma obra relevante na já vasta bibliografia escalpelizadora da tal “descolonização exemplar”, de que hoje fingem indignar-se alguns dos próprios culpados mais directos. É-o não só pelas páginas dedicadas aos acontecimentos decorridos dentro ou fora do Rádio Clube de Moçambique, mas igualmente por aquelas em que se historiam, com simples mas flagrantes anotações, os antecedentes de ordem pessoal ou factual que levaram ao trágico epílogo de todos nós conhecido.
Em boa verdade, não sei o que será mais arrepiante neste livro: se a descrição do terror que se abateu sobre Lourenço Marques depois das autoridades haverem entregue o microfone do Rádio Clube de Moçambique a um militante da Frelimo, se a revelação – corajosa e implacável – de todo um cortejo de abdicações vergonhosas, de traições imperdoáveis, de omissões pusilânimes – e mesmo de ingenuidades – e mesmo de ingenuidades incríveis. De qualquer modo, é um livro para ler atentamente, retendo, por igual, as imagens negativas e positivas que dele se contêm, da mais repulsiva delinquência ao mais abnegado heroísmo, pois de ambas as espécies é feita a verdade.
Não cabe, é claro, no âmbito desta crónica, procurar responder a perguntas que a leitura do livro de Gonçalo Mesquitela inevitavelmente nos propõe: tinha o heterogéneo movimento do “7 de Setembro” capacidade para deter Moçambique no caminho do abismo? Teria, caso lhe não faltassem os apoios prometidos, conseguido alterar o curso da História? Estas ou outras indagações nada têm a ver com a obra em causa, que é, sobretudo, um documento imprescindível para quem queira conhecer a verdade dos factos, mas um documento onde a frieza e a objectividade da análise não podem – não poderiam nunca – ignorar o espírito de gesta que animou aqueles “rebeldes” de uma “revolução sem armas”, os últimos que souberam honrar em Moçambique a bandeira da Pátria destruída.
António Maria Zorro»
In jornal A Rua, 1977, p. 19.
In jornal A Rua, 1977, p. 19.
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