15.9.08

Livro: Dicionário Imperfeito de Agustina Bessa Luís

A Guimarães Editores editou este interessante Dicionário Imperfeito que é antologia de pensamentos de Agustina Bessa Luís sobre a mais variada temática e que dá o início à publicação de toda a obra desta autora portuense.
Aristocracia
“Se é realmente o que promete o seu nome, ou seja o domínio dos melhores, ela é a expressão mais adequada da desigualdade real entre os homens, porque conduz à assimilação dos conteúdos da sabedoria e da justiça, que são valores interiores próprios da ordem aristocrática no sentido puro, e que nunca podem ter os como expressão exterior a ostentação dum pedante.” (p. 20)
Democracia
“Hoje, fala-se imensamente de democracia. Eu acho que não deve haver dez pessoas que saibam o que é democracia, nem acredito que sejam capazes de a viver. Acho que teríamos que começar por aí. No fundo é um estado de civilização muito apurado. Mas, nessa definição, cabem todas as tropelias e todas as insânias e todas as mediocridades.”
Aquilo que podemos chamar desgraça dos dirigentes é a sua desconexão com a massa popular. A democracia acaba em fachada sonsa de uma pequena festa oligárquica; os partidos, produzidos por uma composição de afinidades e sentimentos de grupo restrito, decidem sem a intervenção do povo nas circunstâncias geralmente limitadas a campanhas irreais; campanhas de conteúdo aparentemente cívico e tutelar, como sejam alianças, intervenções e processos persecutórios, internos ou externos, destinados a coroar um valor superlativo do governante. A descolonização foi um desses processos, a entrada na CEE é outro, e assim por diante.
Tudo o que o homem da rua e o burguês resignado podem fazer é conceder a sua confiança ao candidato que – sabe-o muito bem e não isento de azedume – não escolheu. O que explica em parte a renovação dos mandatos, que tão monotamente se sucediam em tempos não distantes, foi sobretudo essa moderação das populações que têm como forma de se terem por inteiradas a familiaridade com o candidato. Aquele que primeiramente parecia mal calhado, e a quem não pouparam a praxe da prova do caloiro que foi sempre, nas comunidades democráticas, como nas estudantis e religiosas, o exercício de competência, acaba por ganhar um direito – o que corresponde à escolha. Por isso é sempre difícil fazer aceitar um candidato novo; o candidato já conhecido tem uma vantagem inegável sobre qualquer outro. O seu carisma pessoal, que transborda para além das suas vicissitudes e limitações, enche o horizonte do eleitor. (…) Nós sabemos que o nosso papel como eleitores é precário.” (pp. 73/74)

Marcelismo
“Uma prolongada fase de incerteza acaba por gerar um desenlace violento, em contradição com os princípios essenciais do próprio pensamento. A revolução de 25 de Abril, na sua história mais radical, resultou dessa saturação da incerteza que o regime de Marcello Caetano personificou. Não tanto pela sua habilidade inoportuna duma linha de continuidade, como pelo aproveitamento duma linha de continuidade incapaz de representar o mundo social da jovem geração.” (p. 177)
Revolução de Abril
Portugal e o Futuro significou para mim a primeira lancetada no corpo social que ia ser desgarrado entre conselhos de especialistas da subversão que calçavam luvas, e legitimistas da insurreição que calçavam botas. Quanto a revolução, ainda estamos em 15 de Abril de 1974: um proletariado que ameaça, uma burguesia que conspira, ou vice-versa.
Está em suspenso o carácter verdadeiro desta Revolução. Ela é reivindicada por grupos e autenticada por pressões exteriores, convertida a ideias civis e militares, transformada em guerra moral e em reabilitação da salvação pública. Mas, na realidade, o que aconteceu? Observadores minuciosos, cuja frieza não é suspeita nem de baixa mentalidade, nem da grosseria de impor a sua razão, nem de hipocondria romântica, não se cansam de reflectir sobre a Revolução de Abril. Um fenómeno com bases pré-políticas, ou um acontecimento isolado, vivido por efeito duma extrema paixão e logo absorvido pelo mundano espírito demagógico e as adorações da civilização; tal como a chamada Gloriosa Revolução Inglesa, esquecido pelo soberano menor que é o povo?
Contudo, o delicado problema, que desde o início perturbou até aqueles que com infalível precisão agiram no 25 de Abril, continua por resolver: o que significa a Revolução Portuguesa? Dizer que foi uma opção que alterou o curso da nossa História, não explica nada.
Os dois principais aspectos positivos: a euforia, que no povo tem historicamente o papel dum sensibilizante quanto a toda a espécie de apetites inumanos que a civilização lhe incute; e a medida da tragédia, que foi criando nas pessoas a ideia de que qualquer poder não sobrevive em comum com quaisquer ilusões.
Os negativos são os equívocos e o amadorismo. Quando se trata de observar a realidade, tudo tem a mesma importância – a realidade oculta, a aparente, o seu processo e a sua origem. É a vida duma nação que está em causa, e não só a sua representação em homens ou em ideias.” (pp.254/255)

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