4.1.07

Drieu La Rochelle – Homem Religioso


Toda a acção e toda a obra de Drieu La Rochelle explicam‑se a partir de algumas coordenadas ou forças propulsoras. Era religioso, inatamente, por ambiente, sobretudo de infância e adolescência, foi pessimista; por ambas as fontes, interrogativo e angustiado. Acrescente­‑se que também inatamente havia nele uma aguda presença de si pró­prio e uma aguda consciência de algo o transcender, mas esse algo, ainda, através de si próprio observado.
A religiosidade de Drieu deve ser entendida, no mais rigoroso sentido primitivo, no de união entre a terra e a transterra, entre a matéria e o espírito, entre o homem e o transcendente, entre a carne e a alma. Significa, portanto, a preocupação e a estima de ambos os elementos do binário. A busca dessa harmonia e, através dela, a aproximação do que a define, o Absoluto, é que movem o autor de 0 Homem Coberto de Mulheres e de Socialismo Fascista.
Para Drieu, o que verdadeiramente conta é o Absoluto. Ali está a paz, o repouso, a segurança, o conhecimento, a unidade. Para o alcançar, Drieu utiliza o amor. Na Primeira Carta aos Surrealistas, ele sobrestima a que se cante o amor e Deus. E Deus, para Drieu, é maneira de dizer o Absoluto. Numa tentativa de cercá-lo, de atingi-lo, de repeti-lo, Drieu utiliza a imagem dele neste Mundo: o amor, nos diversos modos que toma. O amor é força atractiva, ultrapassagem de si próprio e do acidental, orientação para o uno. O amor é realização espiritual, cumprimento de nós próprios, do chamamento que existe no fundo de nós em direcção ao uno, ao perfeito, ao Absoluto. O amor livra-nos da multidão desordenada e fragmentária, livra-nos do acidental, da baixeza e da vulgaridade, o amor dá‑nos a nós pró­prios a nossa integridade, torna‑nos puros e unos, é uma espécie de solidão, sendo uma for‑ma de comunhão. Assim, Drieu adere aos diversos modos de amor: a guerra, a amizade, a camaradagem, o socia­lismo fascista. o amor das mulheres. a união das pátrias — sempre em busca do Absoluto.
Sente o apelo do transcendente, mas este é especialmente o que transcende o pormenor, a parte. Não se trata de um indivíduo intelectualista ou angelista que despreze o natural, o objectivo, o concreto, mas sim de um homem que sorve o natural, tentando chegar‑lhe à alma. Nessa tarefa deixa‑se atrair ou pelas generalizações ou pelos conjuntos da magnífica e deslumbrante variedade. Mística donjuanesca a sua, podia adoptar uma frase extraída de Chateaubriand «Je me composai donc une femme de toutes les femmes que j`avais vues...») ou outra de Menotti del Picchia, em Angústia de D. João («Eu, fragmento a fragmento a amada recomponho, pois, em cada mulher há um pouco do meu sonho!») Realmente, existe esta revelação de uma personagem de Drieu: «Não era o prazer que eu desejava, mas sim a forma das mulheres.»
Drieu ama a forma, o aparecimento da essência, a revelação e manifestação da essência, ama-a como forma, como sustentáculo, definição, molde, alma, estrutura do objecto. A forma é sagrada, é essência e aparência, é religiosa, ligação entre o natural e o espiritual, entre o particular e o universal, entre o objectivo e o transcendente. E é na vida, e especialmente na vida humana, que mais próximo se nos faz a manifestação, a explicação do mistério intrínseco à forma: a essência. Na corrente e na pulsação da vida, o eterno retorno clã morte acena uma explicação que não entrega. «Nelas Drieu sente aquele atractivo, esmigalha‑se e dilacera-se, querendo ter ele também, ser ele também a perfeição da forma, das formas. Estar nos modos de viver, sem se anquilosar neles («Nenhum modo de viver é tão vasto como a vida», diz uma personagem de Une Femme e as Fenêtre), eis uma ambição que acicata Drieu. Estar na aparência e na essência, conhecer a aparência e a essência, alcançar a vida e, no interior dela, a acção da morte, reconciliar em si próprio o Mundo e o transmundo, decifrar os símbolos, os signos e os enigmas que as formas são — eis o constante impulso de Drieu La Rochelle. Compreende-se que nos seus últimos anos (pelo menos desde 1943) o interessassem os estudos de René Guénon, sobre o esoterismo.
Atirado para o Absoluto, o autor de Interrogation e de Charlotte Corday, recusa-se ao acomodamento ou à rotina. Ele é um extremista e um apaixonado, é excepcional e um místico. Na meditação e na acção quer realizar e conhecer, avançar para o Absoluto. «No tempo da infância, no tempo da pureza, eu quis ser soldado ou padre. Depois, o fogo do sexo começou a gerar-se no meu ventre; então fiz voto de ser um amante inesquecível. Noutro passo, diz ele que, se pudesse refazer a vida, seria oficial em África e, depois, historiador de religiões; e é, pois, a sedução da ardência, elo mistério, do sangue, da religiosidade. No panfleto dos surrealistas contra Anatole France, Drieu escreve a sua acusação: «.... Sem Deus, sem amor tocante, sem desespero insuportável, sem cólera magnífica, sem derrotas definitivas, sem vitórias completas.»
O sentido do sagrado obsidia, por conseguinte, Drieu. Mas este sentido surge como algo de ritual e gigantesco, de profundo e de exacto, de majestoso e de manifesto, de divino e de terreno. Se a exigência de Drieu foi, sempre, a de uma concordância entre a matéria e o espírito, se ele busca a forma, isto é, a correspondência, a harmonia, dir-se-ia que procura, afinal, o número sob a aparência. O sagrado não é, pois, para ele, possessão, mas sim exactidão e conhecimento, tal como os monumentais templos egípcios e ameríndios.. Assim, Drieu nem dá pelo pormenor desintegrado ou acidental. «Descrevia pouco elo exterior elos seus heróis, contentando-se com alguns traços, tanto os espirituais, aliás, como os físicos, mas que traços!», diz a seu res­peito Pierre Andreu. Essa característica que pareceria esquematizadora, estilizadora, vem expressa também em duas passagens de Drieu: numa em que se chama abstratactor e noutra onde escreve: «Eu vejo, o Mundo com olhos de arquitecto.» Como se repetisse: «Ninguém entre aqui se não for geómetra.» E o divino assinalado na manifestação é o que ele parece buscar nas matriarcais mulheres enormes, solenes e serenas, ou no santo sacrifício da guerra, ou na ordem religiosa do socialismo fascista.
É a falta de sentido religioso, é a falta de espírito, é um mundo de formas esvaziadas de conteúdo, é um mundo‑museu, é um mundo sem vida, é um mundo mecanizado ou fossilizado, é o cemitério, o vazio, o nada desta civilização, que o levam a juntar‑se aos dadaístas e, ainda mais, aos surrealistas: «Com alegria amarga — escreve ele —, abateremos esta civilização que aí está, no meio de nós, ainda ele pé. Esta civilização já não tem vestuários, nem igrejas, nem palácios, nem teatros, nem quadros, nem livros, nem sexos.» Ouve-se a mesma acusação em Ezra Pound: «...Nenhum quadro é pintado para durar ou viver com ele.» Ouve-se o mesmo lamento em D. H. Lawrence: «Quando os homens de agora agem sexualmente, não fazem, a maior parte do tempo, senão representar um papel.» O que esperava Drieu daquele movimento? Ele o declara, na primeira e na segunda Cartas aos Surrealistas: «É certo que se perdeu por completo na Europa o sentido do absoluto e eu esperava que o vosso pequeno grupo, por vias aliás muitas vezes fúteis, não se tivesse furtado à companhia da multidão perdida, senão para subir àquela fonte, a única fecunda. Sim, eu esperava verdadeiramente que vós fósseis mais do que literatos, fósseis homens para quem escrever é acção e toda a acção a procura de salvação. ...A acção era, doravante, melhor compreendida, mais profun­damente, como sendo o próprio movimento elo pensamento. Lançamo-nos em pós do pensamento, numa aventura cada vez mais interior... O pensamento puro esgota toda a acção, é acção..., parecia-me que vós tinhéis descoberto a liberdade na vida interior.»
Todas as ideias, preocupações, vida de Drieu se cifram nessa aventura religiosa. O amor das mulheres, a guerra, o corpo, o desporto. a política são armadilhas que ele faz ao Absoluto, armas com que pensa conquistá-lo, estradas para atingi-lo, ecos, imagens, sucedâneos da sua realidade, são modos de ligar a terra ao céu.
Drieu La Rochelle amava o espírito na matéria e considerava que os dois altos pontos desta acção eram a forma e a vida. A vida, no entendimento de Drieu, era como que uma corrente em busca de forma, tomando formas e renovando‑as, animando-as, vivificando‑as, ao ultrapassá-las em novas formas. Também Drieu repetia a vida em busca da forma, impulsionada pelo desejo de Absoluto, apostado em descobrir e possuir, mediante as formas, o espírito na matéria.
O amor constitui, para este homem torturado, uma demanda de além. de essência. Como personagens suas, ele tem «fome das mulheres», procura‑as «com uma avidez de fera», mas quer possuí‑Ias indestrutivelmente e todas, em unidade, em permanência, em Absoluto: «Eu quis sempre casar‑me com todas as mulheres com quem fui para a cama», diz um seu herói. Nas mulheres, é ainda a forma e a vida que Drieu ama: «Não era o prazer que eu desejava, mas a forma elas mulheres»; Ela esplendia nesse mérito, ...nessa generosidade da carne que podia fazer acreditar na generosidade da vida.»
Também a guerra é, para ele, algo de sagrado. Nela se realiza um acto religioso (Péguy). Na guerra há um sacrifício (sacro oficiar), há uma transformação e uma purificação («A essência da guerra, o sacrifício, estava intacta», escreve Drieu em Mesure de La France). Na guerra, afastados da vulgaridade, do individualismo, dos apelos materiais e da sua correnteza, os homens afirmam-se e elevam-se, ao construir segundo o espírito, ao ultrapassarem-se, ao unirem-se, ao amarem o que transcende a miséria de cada um. Por isso Drieu observou: Num domínio estreito e profundo, nós tínhamos cumprido, realizado actos. No nosso sangue que corria, tínhamos visto um amor prodigioso. E ele não estava esgotado.» Mas o principal na guerra é, para Drieu, a dádiva dum estado místico e o limiar do conhecimento, da posse absoluta. Arrancado à ganga do dia-a-dia e das satisfações, com a atenção livre das dispersões que o afundam, despido dos véus da sensualidade e das necessidades quotidianas, cada um de nós, puro, nu, solitário, encontra‑se, na guerra, quase face a face com o essen­cial e o além, com a morte e a verdade. Assim, Drieu pode escrever: «Esta alegria que me arranca a todos as prazeres, a todas as alegrias, é terrível. Mas ela puxa por mim, arrastam-me. A solicitação foi demasiado, longa, demasiado premente e demasiado encarniçada... Guerra, espécie de solidão, tu me obsidiaste, tu me dominas. Eis o teu supremo assalto. Tenho de abandonar-me a ti, e por completo. Puseste em mim uma incurável ternura; já não saberei mais viver sem ti. Penetraste‑me com um amor estranho. Sou um pobre menino fascinado e perdido. Despertarei deste sonho místico?»
Por sua vez, também o corpo tem, aos olhos de Drieu, um carácter religioso. Pelo corpo se especifica a alma. «A alma é a forma do corpo», afirmara S. Tomás de Aquino, e Drieu continua a acreditá-lo. No Mundo, o corpo humano é a nobreza da matéria e a alma a assunção do corpo. Pois o corpo humano é espiritual e a alma humana é carnal. Existe uma unidade substancial da alma e do corpo. Drieu exalta a matéria, mas na aliança com o espírito. E se o corpo é uma das mais altas revelações do divino, é a divindade a agir, é sagrado, é religião, ponte ou ligação entre a matéria e o espírito, só é isto e só é liberdade quando harmonizado com a alma, como na altura que Drieu relata: «A minha alma, decidida e implacável como uma civilização juvenil, reinou durante dois anos sobre sobre o meu ser.»»
E segue‑se o desporto nesta empresa religiosa que são as crenças e a actividade de Drieu.. Ele ama e louva o desporto por duas razões. Primeiro, vê ainda ali repercutir‑se a guerra, vê ali uma forma de luta, instrumento de religião.
Por fim a política. Drieu quer restituí-la a uma altitude e grandeza antigas.. Quer livrá-la da prostituição, onde ela caiu, quer que ela seja arte e religião. Considera-a como um modo de amar, de unir, um modo de conhecimento. Ele próprio diz: «Pela política, ai de mim!, eu queria conhecer os meus companheiros» Quando se desiludia das mulheres, quando se cansou da «vida parisiense», cede, enfim, à ten­tação e transpõe, do individual para o político, o seu impulso para o absoluto. «Assim como ele sofre com a visível desagregação cívica, o social do seu povo, também sofre com a sua própria desagregação, com a desordem e a infecundidade, dos seus amores», observa Daniel Halevy. Pela política, Drieu pretende salvar‑se, salvar o seu povo, salvar os homens. Por ela, quer que se conquiste a unidade. Unir foi a preocupação deste atormentado e ansioso ‑ de Absoluto. Unir o mais antigo ao mais moderno, unir o capitalismo ao socialismo, unir as pátrias à Europa, unir a variedade à unidade. Integrar, unir, soldar por uma espécie de rito, de relações sagradas, recriar manifestações do Absoluto para nelas sentir-lhes o odor, o espírito, a essência, eis preocupações de Drieu, eis o sentido da sua acção política.
Através de vicissitudes, rondando partidos, formações e grupos, observando canalizando a actualidade, interrogando e perscrutando o futuro. Drieu procurava o que melhor correspondesse à sua íntima necessidade. Atraído pela Action Française desde a adolescência, não se decidiu. porém, completamente. Encontra insuficiências na direita e na esquerda. Em 1917, e até 1925, acompanha os dadaístas e os surrealistas, mas logo em 1918 publica Mesure de la France, patriótico incentivo à renovação da França, ao desenvolvimento populacional. à criação de uma nova mentalidade. Em 1925 rompe com os surrea­listas. Começa a definir e a proclamar mais firmemente as suas ideias sobre a unidade da Europa. Em 1928, escreve que as pátrias vão desa­parecer e que os chefes ocidentais e os capitalistas ou renunciam às barreiras nacionais e criam uma federação ou têm de entregar‑se ao Comunismo. Em 1930‑31 aproxima‑se das esquerdas, que lhe parecem mais propícias a fazer a Europa, e declara‑se socialista. Em 1932 observa o socialismo triunfando por dois modos, o comunista e o fascista, e procura um modo para a França. Em 1933 aderiu à Frente Comum contra o Fascismo, do seu amigo Bergery, a qual falhou. Em 1934, a vitória dos nacionais-socialistas, os êxitos da renovação fascista e o aparecimento em França de movimentos com a ideia nova tiram-lhe certas incredulidades, sem que deixe de continuar indeciso. Em 6 de Fevereiro desse ano, os guardas atiraram sobre a multidão parisiense que protestava. No dia seguinte, Drieu aderiu ao Fascismo, embora durante as primeiras semanas não usasse aquele título. No Outono, publica o seu livro Socialismo Fascista. Em 1936 adere ao Partido Popular Francês, de Doriot, e ali continua defendendo o Fascismo. Em 1938 retira‑se do P.P.F. e de uma activa preocupação política. Em 1939, continua a pronunciar‑se a favor duma Europa unida. Em 1940, torna‑se um dos chefes do partido colaborador, crente em que a Ale­manha fará a Europa, e que o, socialismo de forma europeia triunfará. Vai‑se desiludindo pouco a pouco dos homens e dos partidos, embora fiel às suas ideias. Para o fim da guerra, chega, várias vezes, a supor que a Rússia se substituirá à missão em que a Alemanha falhou: unir a Europa e realizar um socialismo europeu. Mas a consciência da perversidade e da selvajaria dos Russos é mais forte e ele não consegue resignar‑se à «vinda dos hunos». Uma grande melancolia o invade. Todos traem a Europa. E nos escombros da derrota nazi e fascista, só se descortina o avanço dos hunos e dos americanos tão detestados, esses extra‑europeus campeões da democracia. Em 12 de Agosto de 1944, tenta suicidar‑se. Dias depois, volta a tentar. Por fim, em 15 de Março de 1945, consegue matar‑se, tomando uma enorme dose de gardenal e abrindo o gás.
Drieu La Rochelle declarou, em Janeiro de 1943: «No Fascismo eu vi o único meio de conter e reduzir a decadência». Para ele, con­forme assinala Pierre Andreu: «o Fascismo é o socialismo, é um outro socialismo que tomou ao socialismo antigo tudo o que ele tinha de bom e que lhe ajuntou o sentido mais antigo ainda da complexidade da vida, com os seus profundos segredos espirituais. ... 0 Fascismo pre­tende alcançar o homem total, em todas as suas actividades».
Este sentido da unidade, dos segredos espirituais, da complexidade da vida constituem a sedução que Drieu encontrou no Fascismo e que lhe exigiu, numa atracção de religiosidade.
E assim viveu e morreu Drieu La Rochelle, homem religioso, para quem escrever foi acção e toda a acção a procura de salvação. Pôde receber os elogios de grandes autores e ser acariciado pelo êxito aventureiro do Absoluto, foi um combatente fascista, um interventor, um exemplo de altíssima nobreza moral.
Goulart Nogueira
In «Tempo Presente», n.º 11, Março de 1960

1 comentário:

Manuel disse...

Eu agora resolvi estimular os foros...
Grandes pontos de encontro e de discussão, trocas de informação e conhecimentos, divulgação rápida, depois dos blogues é a hora de apostar em foros!