14.8.07

Poema de Rodrigo Emílio: soberano Soveral

SOBERANO
SOVERAL


A Portrait of the Artist, quando a bordo de uma das últimas nossas Naus Cat(a)rinetas…

***

«...chaque sentinelle est responsable de tout l`empire»

Antoine de Saint-Éxupéry (in «Terre des Hommes»).

Lembro-me de mim,
quando de Si me lembro,
envoltos no cetim sem fim
desse fim-de-Setembro...!

Galante era a galera,
o galeão
que a monção tinha, então, à nossa espera
(ou talvez não...)
, numa das quinas deste cais todo de pedra
onde, agora por agora, nada medra...,
onde apenas, hoje em dia, a perdição impera:
apenas ela, sim — a perdição...!

Galante era a galera (olá, se era!...),
galante, o mareante, e o galeão
que a viração
do fim-de-tarde madrepérola
desse fim de fim-de-Verão
ali assim pusera e depusera
(ou talvez não...)
à mão-de-semear da nossa mão...

Galante era a galera;
galharda, a guarnição
do galeão,
quando outra era a hora: outra, a era,
e outro, outro era
o capitão.

(Em que ano
e meridiano
isso foi, afinal...?

Qual o sacro oceano
que o viu — e me viu —, marcial
e ufano,
em pleno litoral vitoriano,
sacar do manual ao vendaval

e, face ao visual
semi-serrano
da costa do Natal,
reger concertos de areal
e piano
para monte e vale?!...

Qual deles terá sido, o oceano?
Qual foi, de todos eles? Qual foi ele...?
Qual

o que mais e melhor terá servido de pano
geral de fundo
a esse vago e já vetusto
postal
africano
de tantos de tal...?!

Ao colo
de que solo
tramontano,
ao mando
de que afã
imperial,
teve lugar o ritual
pretoriano
desse nosso mano-a-mano
tropical?...

Qual o marulho, a maré
que singra, ainda agora, à proa e à ré,
em todo o imemorial
meridiano
desse mar meridional...?

Em que ano
e oceano
foi isso tudo real?...
Quando, onde,
onde e quando...,
soberano
Soveral?!...)

Lembro-me de mim,
ao certo,
quando de Si — quando de Si me lembro,
envoltos no toldo de cetim
de certo fim-de-Setembro
reencoberto
— há perto de trinta anos reencoberto:
há mais ou menos cerca de trint`anos,
ou uma coisa assim...

(...Anos de cela penal,
anos de crime e castigo,
anos sobre anos de olvido e coval,
de campa e jazigo...

Anos atrás d`anos
que, a ambos,
nos saíram, por sinal,
todos bissextos...)

E o meu naval
Amigo
a compulsar oceanos,
a capitanear frotas
de textos,
a compilar cadernos de arquétipos,
de arcanos,
a coligir cardumes de náuseas e êxtases
marinhos,
a guarnecer de notas
e apontamentos
o torvelinho
sebástico de rotas
salmodiadas a solo, e a horas mortas,
sob o solfejo saturnal dos ventos...!
A convocar abadas de gaivotas,
magotes de golfinhos,
de gaivotas,
para linhas-de-rumo, as mais remotas,
e toda a apoteose de aposentos...
A desfiar e a desbravar caminhos,
entre abrigos de abismos e abóbadas...
A folhear, em livro, os firmamentos...

(À ogiva da vigia
surgia a cítara de Ovídio;
e, à medida que a ouvia,
ao ouvido,
a travessia
ganhava duplo sentido.

A lira da maresia,
essa, transida, tangia
um alígero resíduo
à nostalgia
de Hesíodo...

O porão
mirava a areia
como Jasão
a Medeia...)

E a viagem soma e segue: à imagem
da corrente,
soma e segue, chega e sobra.

Limo a limo, a aragem sopra,
solta ao vivo
a sua trova e dão semente
ao seu vagido
bicos-d`obra geográfica.

— Já, ao ritmo da Europa,
crava a gente lanças n`África!

Lembro-me de mim,
quando de Si me lembro,
envoltos no toldo de cetim
sem fim
de certo fim-de-Setembro...,
quando o ainda célere selim
de espaço e tempo
deixava correr a fio o seu marfim
(e o marfim, sem fim, do sotavento),

connosco a bordo do motim,
ambos lá dentro,
e Deus (e Odin) ao centro:
bem ao centro!

Onde, a esfera armilar,
o atávico plano,
o doirado armorial?...
Onde, o mar...? O alto-mar?!...
O mar-alto, a todo o pano...,
soberano
Soveral?!...

Onde, a trompa militar?
Onde, a harpa, onde o piano
desse cântico coral?...
Onde, a amurada, o palmar?
O anfiteatro sem par...?
Onde, o sopro lusitano...?
Onde, o Sonho, o sol, o sal?...

Onde, o bosque, o mastro, o hangar?...
Onde, a guerra de arreganho?
Onde, o sabre? Onde, o punhal?...
Onde, o ímpeto solar
do cheka, do veterano...?
Onde, o posto-de-comando?
Onde, a cruzada...? O graal...?
E onde, o mar...? O alto-mar?!...
O mar-alto, a cada canto...,
soberano
Soveral?!...

Aonde, voz que murmure,
diga à memória: «go back!»,
antes de me eu pôr, como outrora,
a fazer o tour
do deck,

até onde
— até lá onde
se entr`esconde
a chaise longue
que lhe ampara busto e torso,
dá, ao tronco, encosto
olímpico,

e faz realçar-lhe o rosto
que contracena, a gosto, com o Índico
e o sol-posto,

ao mesmo tempo que a aragem,
a que reagem
as marés,
toma o convés,
de abordagem,
cinge a si aquela imagem,
e vem prestar vassalagem,

render preito de homenagem
aos pés dos pés
dos seus pés...

É a um grande, grande plano,
quase sobrenatural
e datadinho d`antanho
— que me eu atenho,
como ao trecho de um mural,
toda a vez que o acompanho

ou lhe desenho,
a cada ponto cardial,
o seu oval
d`espartano,
soberano
Soveral!

Onde, a terra, a torre, o altar-
-mor das águas, com seu manto
de âmbar, nácar e cristal?...
Onde, os céus do Malabar,
o capim moçambicano...?
Onde, os morros do Transval?!...

Onde, o aro do olhar
à carta de marear...,
o alferes miliciano
tatuando o matagal?...
Onde, o cano a crepitar?
Onde, a cubata tribal?...
Onde, o epos secular,
catedral do ideal...!?
Onde, o arauto ariano
desse aroma arqui-naval...?!
E onde, o mar...? O alto-mar?!...
O mar-alto que eu reclamo...,

soberano
Soveral?!...

Rodrigo Emílio.
(Em Lisboa, aos 4 de Novembro de 1999, pelo aniversário natalício do dedicando, e no Porto, em dia de Ano-Novo, Novo Século e Novo Milénio. 1.º de Janeiro de 2001.).

Sem comentários: