12.8.07

Miguel Torga visto por Rodrigo Emílio

«MIGUEL TORGA NO DESERTO DO TEMPO ATRAIÇOADO
UM DOS MAIS ALTOS CUMES DA POESIA

Estava escrito que o nome de Miguel Torga sairia coberto de glória da duodécima Bienal Internacional da Poesia, com a conquista do Grande Prémio respectivo. A suprema distinção — que já em edições anteriores coroara o labor criador de poetas de primeiríssima grandeza, como Ungaretti, Saint-John Perse e Octavio Paz — foi agora outorgada a Miguel Torga (e a muito justo título, diga-se já), em Knokke-Heist, na Bélgica, por um júri composto de sumidades literárias, oriundas das mais diversas latitudes geográficas e das mais desencontradas procedências estéticas, e representando, ao todo, catorze nações. Portugal (digamos...) também esteve lá caído, com uma delegação chefiada por David Mourão-Ferreira, a quem assiste, de momento, a duvidosa honra de ser Secretário de Estado da Cultura deste dilacerado país, que é, hoje por hoje, o nosso.
Analista cultural dos mais categorizados que já produziu esta terra; espírito provido e apetrechado de recursos de erudição, e de cirurgia crítica, de insuplantável gabarito; e, também ele, poeta de vulto — em boa hora Mourão-Ferreira propôs a destino e defendeu (de resto, diga-se: nem sempre nos termos mais prestigiantes para Torga, e até mesmo para si próprio) a candidatura do homem de São Martinho de Anta a prémio de tamanha projecção. Quer-nos, de facto, parecer que muito mais valorosamente David Mourão-Ferreira teria advogado a causa do seu (e nosso) constituinte, se, no panegírico que dele traçou perante aquela assembleia de poetas de todo o mundo, o mesmo David se tivesse deixado de demagógicas alusões ao cativeiro que a pessoa e a obra do universal transmontano (afinal de contas, quase não) conheceram «sob o regime de Salazar», e tão-somente se limitasse a advertir a atenção dos presentes para um dos mais altos cumes de sempre da Poesia Portuguesa, que era de inteira justiça consagrar a nível mundial. Conjecturando. Há que admitir, no entanto, que alguma poderosa e ponderosa razão terá levado o Secretário de Estado da Cultura a cantar o batido e estafado «fado do grande e horrível crime», ante aquele auditório todo. Só se foi (a hipótese é muito de aventar) «para estrangeiro ouvir» e se condoer «do pobre poeta, coitado», e tomar tudo isso em linha de conta... Mas, se assim foi, bateu o proponente de Torga a porta errada, pois lindamente se sabe que o grande poeta — estruturalmente insubornável como é — rejeita argumentos desse género a seu favor. E depois, convenhamos que falar do Estado Novo como «de um sombrio período da (nossa) história contemporânea» — tal e qual o fez David Mourão, em Knokke-Heist — resulta tanto mais desavisado, quanto é certo que nunca a Pátria Portuguesa passou por dias de tão denso negrume histórico, e de tamanha cerração política, como actualmente!... E Torga sabe-o bem, e di-lo aí afoitamente, para quem queira ouvir.
Assim, não data propriamente do tempo da ditadura — e é sim, de Novembro do ano passado — o mais cruciante Lamento em verso que Torga já escreveu em dias da sua vida:
«Pátria sem rumo, minha voz parada / Diante do futuro! / Em que rosa-dos-ventos há um caminho / Português? / Um brumoso caminho / De inédita aventura, / Que o poeta, adivinho, / Veja com nitidez / Da gávea da loucura? Ah, Camões, que não sou afortunado! / Também desiludido / Mas ainda lembrado da epopeia / Mas ainda lembrado da epopeia! Ah meu povo traído, / Mansa colmeia / A que ninguém colhe o mel! / Ah, meu pobre corcel / Impaciente / Alado / E condenado / A choutar nesta praia do Ocidente!»
Por outro lado, também está longe de ser do tempo do fascismo — salvo erro, é só de sábado passado — o mais severo comentário em prosa que do seu punho saiu alguma vez sobre a realidade portuguesa de algum dia. Reportando-se, em termos tão implacáveis como lapidares, às empolgantes conquistas da revolução, dela nos dá Miguel Torga este aporrinhado panorama:
«(...) entre outras misérias, chegámos à da própria negação nacional. Por uma razão ou por outra, perdemos o ideal da Pátria, e todo os que sabemos ler nos envergonhamos intimamente de ser portugueses. Aberta ou encobertamente, todos sentimos desonra nos nossos feitos, nos nossos heróis, nas nossas tradições, nos nossos santos e nos nossos poetas. Nas nossas virtudes, e naqueles que as souberam encarnar assinaladamente. A Língua é um farrapo de interjeições e de verbos errados, que mais ninguém cultiva; a História, um acervo de ignomínias, que tentamos esquecer; os usos e costumes velharias que nem o sótão da lembrança merecem; nenhum valor especificadamente nosso nos parece digno de ser amado, e muito menos proclamado.
Ora, uma pátria é um território balizado por essas marcas étnicas, éticas, históricas, idiomáticas e sentimentais. É o espaço telúrico e moral, cultural e afectivo, onde cada natural se cumpre, humana e civicamente. Só nele a sua respiração é plena, o seu instinto sossega, a sua inteligência fulgura, o seu passado tem sentido e o seu presente tem futuro. Mais: apagada essa chama sagrada, apaga-se também em cada um de nós a vocação comunitária. Cada vizinho, de familiar passa a estranho, e de estranho a indesejável. É, porque ela se apagou, é ver como os elos que nos uniam se partiram, e nos encontramos divididos, activa e passivamente, inimigos dos amigos de ontem, e até de nós próprios».
«(...) desiludido / Mas ainda lembrado da epopeia» toda do seu Povo — «Povo traído» e, doravante, «condenado / A choutar nesta praia do Ocidente»:
assim se exprime Miguel Torga nos gloriosos dias de vilipêndio que vão correndo!...
Paradoxalmente, datam do tempo da ditadura os livros de mais chamejante patriotismo, e de mais acendrada vibração lusíada, que Torga até hoje publicou — como seja, por exemplo, o caso desses adustos Poemas Ibéricos, em que assinaladamente se canta e evocadoramente se celebra, com inteira percepção heráldica e quinto-imperial, a nossa História Trágico-Telúrica, a nossa História Trágico-Marítima, e quantos Santos, Sábios, Soldados e Poetas nesta Península floresceram!...
«Orfeu rebelde»: hoje como ontem, e como sempre, «rebelde e desterrado» (e, contudo, ciente de que «No deserto do tempo atraiçoado, / Basta uma afirmação» como a sua), continua Torga a não ser o tartufo que muitos queriam que ele fosse, na mira de se apoderarem dele. Viril e arisco, recusa «apoderados». Não os tem. Nunca os teve. Não era agora que ia passar a tolerá-los!... Sobra-lhe em génio o que lhe falece em oportunismo. O que é raro — mais: o que é único! — na nossa esquerda intelectual...
E daí que Torga possa (e deva) passar por ser «o habitante da margem esquerda do rio das ideias» menos gratuito que temos por cá. Ainda mesmo quando se destempera e disparata — e disparata o seu bom pedaço, manda a verdade que se note —, é arrepanhado e derrancado de autenticidade que Torga se nos apresenta e endereça sempre. Assiste-lhe a violenta autenticidade de todo o ser marcadamente instintivo. É com o instinto — transmitido a uma prosa e a uma poesia de elevada temperatura temperamental — que nós sobretudo nos defrontamos, quando se trata de ler uma página de Torga. Mas o «instinto, fiel ao chouto da terra». Não outro.
«Meu canto, bafo da terra»... Bafo da terra, o seu canto percute, por sistema — como de resto, muito trecho em prosa —, «A lição virginal / Do natural, / Que é sempre o mesmo e sempre variado». Ou seja: a sempre reveladora lição, ministrada e prodigalizada nas aulas da natureza. «Li centenas de livros, e continuo a ler» — proclama ele. — «Mas é na cartilha da natureza que aprendo o que à minha inquietação mais importa».
Da natureza incessantemente aprendida e, mais do que aprendida, apreendida; da natureza, enquanto moldura cósmica onde sem fim contracenam «as mondas da morte e as replantações da vida»; da natureza, como tal, interiormente comungada «nos transes da sua perpétua agonia, morte e ressurreição»; da natureza grudada, em suma, à essência do verbo, nos fala Miguel Torga: «Falo da natureza, / E nas minhas palavras vou sentindo / A dureza das pedras, / O perfume das flores. / Digo, e tenho na voz / O mistério das coisas nomeadas, / Nem preciso de as ver. / Tanto as olhei, / Interroguei, / Analisei / E referi, outrora, / Que nos próprios sinais com que as marquei, / As reconheço, agora». Para ele, a própria conduta criadora do poeta deverá pautar-se em conformidade com o comportamento criador da natureza, e à sua imagem e semelhança: «Um poema, poeta! É o que a vida te pede. / (...) Junta à fecundidade / Da natureza / Os frutos da beleza / Versos grados e doces / Na festa do pomar. / Versos, como se fosses / Mais um ramo, a vergar».
Tema entre todos dilecto, assim se manifesta, em Torga, a natureza: com reiterada insistência a convoca a pleito, e sobre ela reflecte inesgotavelmente, com divagadora acuidade. Em dado livro, escreve: «Reajo, como posso, contra uma pedagogia que se esquece de acrescentar, às lições de quantas ciências ensina, que as aves cantam, que as águas sussurram, que só há um acto que o homem pode repetir eternamente com originalidade: olhar a natureza». É, aliás, nesta mesma ordem de ideias, que o poeta sustenta que «em Portugal» — e é de Portugal que sempre fala — «só há uma lide que não falha nunca: a que travam os olhos com a natureza do cimo de qualquer outeiro».
Impenitente andarilho e transeunte infatigável da terra portuguesa, constantemente o poeta nos leva «a transitar de paisagens», impregnando-nos do sortilégio perscrutado em cada uma. E, o que perante nós esplenderosamente avulta, é, afinal, toda uma surpreendente teoria de «pasmos panorâmicos», todo um supremo «rol de deslumbramentos», de demiurgicamente transposto da grafia telúrica para a do papel. Esta entrega apaixonada do poeta, este seu abandono absorvente ao conhecimento, fixação e explicação da natureza, obedecem, entretanto, a requintes de hierarquização, extremamente saborosos e perfeitamente definidos: «A minha aprendizagem da realidade pátria» — confia-nos Torga — «é lenta e descendente: comecei pelos monumentos, passei pelos habitantes, e agora vou na vegetação. Fica-me depois só a faltar o solo, que espero conhecer a fundo quando for enterrado nele...» Esta mesmíssima imagem, do mergulho do homem bem a prumo na intimidade do húmus; esta flageladora demanda do ventre e entranhas da terra-mãe, vem a ter, aliás, a sua glosa em verso corrido, quando o poeta, pateticamente, exclama: «Encho os olhos de terra. / No Alentejo há muita, e é de graça. / Dou-lhes esta fartura, / Antes que um só torrão, na sepultura, Os cegue e satisfaça».
A quem frequente Torga com assiduidade — e, mormente, a fieira de tomos do seu incomparável Diário —, já há-de ser familiar esta presença obsidiante da terra-chã como motivo de escavação constante. É que, na obra inteirinha deste orfeu rebelde, «A gente sobe a um monte, e, em vez de se aproximar do céu, chega-se mais à terra. Os êxtases, aqui, são de cima para baixo»: «(...) dessa altura / Que a alma atinge ao rés da sepultura». «Os meus arrebatamentos» confessa-nos o poeta — «processam-se ao nível do chão». De olhos no chão, é que ele, as mais das vezes, ensaia a descida às profundezas tenebrosas do subsolo anímico, a «Remover toda a sombra de que é feito», e de lá arranca «chispas de revelação»: «Desaterro a negrura. / E, quanto mais fundura, / Mais luz reluz no aço do enxadão!»
A atestar, ainda, o elevado grau de autenticidade que a este canto preside, cabe notar, por fim, que é logo à partida para cada poema, no próprio verso inicial da composição, que a voz de Torga desde logo patenteia «A força que faz dela um desafio»: «A fonte brota, e tem logo ao nascer / O ímpeto de um rio». Se liberta em prosa, tem essa mesma voz o condão de insinuar-se não menos poderosamente, na enxuta plenitude «da frase aparada até ao sabugo e ao mesmo tempo túmida de sentido».
Saudemos Torga, pois! Saudemo-lo daqui, nesta hora alta do seu destino pessoal, nesta hora amarga do nosso destino colectivo!...
Rodrigo Emílio»
In A Rua, n.º 24, pág. 21, 16.09.1976.

1 comentário:

Anónimo disse...

Isto sim é serviço publico.

Legionário