12.8.07

Miguel Torga, Manuel Maria Múrias e Rodrigo Emílio

«MANUEL MARIA MÚRIAS CONTRACENANDO COM TORGA NO CONSULTÓRIO DESTE, EM COIMBRA, OU: UM DEBATE-PAPO DE HÁ VINT`ANOS»

Um rendez-vous anedótico mas verídico, saboroso como tudo e duplamente revelador, relatado por Rodrigo Emílio.
***

Está a fazer vint`anos que «o único jornal da Direita que não era — ou talvez fosse... — do Centro», saiu da massa dos impossíveis para o meio da rua.
Seu nome? «A Rua», precisamente.
O país tiritava, então, valentemente, de norte a sul, ainda mal-recomposto, mal-refeito do vivo pandemónio em que andara entre 74 e finais de 75.
Sob a égide empolgante do Manuel Maria Múrias — que transpusera, pouco antes, o «polígono» penitenciário de Caxias, de volta a casa, e ao ar livre, depois de quinze longos meses de ar condicionado e de discricionária e arbitrária reclusão —, o jornal depressa ganhou rosto, corpo, alma, volume e espaço próprios, e mais depressa ainda conquistou os elevados níveis e índices de audiência que se sabe.
Ao terceiro mês de existência, dá-se o advento de Torga no olho d`«A Rua», por iniciativa privada de mon stylo.
A direita cultural, intelectual e literária independente, a que me orgulho de pertencer, sempre teve um «fraquinho» declarado por dois grandes escritores indígenas que era suposto serem de esquerda ou a que ela se julgariam (erradamente) vinculados: Vergílio Ferreira, um deles; o outro, Torga.

O primeiro — há que frisá-lo — ficou a dever aos bancos e carteiras provinciais, e providenciais, do Seminário, que o respaldaram de ciência e sapiência desde menino e moço, aquela sublime aptidão linguística que está na base de toda a pura e inebriante música pensante em que plasmou o seu discurso criador, rubricando com ele uma escrita perfeitamente miraculosa, com a qual aprontará sucessiva obras-primas.
A «Manhã Submersa» não lhe terá sido, finalmente, tão submersa como isso, e antes «le matin profond» que o iniciou — que o internou a fundo, digo, no mágico e Sagrado Bosque das Letras, onde, ao depois, ensaiou o recitante Voos sobre voos de alto rasgo. E ele sabia-o — e não ia fora disso, toda a vez que lhe fazia alguém notar o avultado montante a que ascendia a dívida literária que contraíra ele com o Seminário, e que só o manto de beleza extasiante, que paramenta os seus «récits», e a milionária riqueza problemática — de teor estético ou de cariz metafísico — que os povoa, incorporada e questionada pelo autor em livros de suma densidade poética, e de asa musical transfiguradora, como o «Cântico Final» e outros — terão logrado saldar por inteiro.

Torga, esse, projectava-se à luz de uma outra galáxia, muito menos volátil e muito mais transitável, mas igualmente predestinada a sagrá-lo de grandeza — aos olhos da direita, e tudo...!
— Mas por que carga d`água é que a direita gosta tanto de mim? — perguntava, volta e meia, altamente intrigado, o poderoso poeta e «diarista».
A direita — e eu por mim falo: por mim e por ela — prezava, em Torga, antes, depois e acima de tudo, a sua visceral autenticidade de rapsodo de raça, e da Raça, e de aedo lusíada — que o era até à quinta casa...! —, e a qualidade e temperatura temperamental do seu protesto.
Por isso o gabei eu, de alto abaixo, nesses acetinados idos de Setembro de 76, nas colunas d`«A Rua», compondo, na circunstância, uma peça ensaística, de «tónus» polémico, que era um perfeito e acabado hino à mais corajosa, frontal e desassombrada fracção da sua obra.
(O texto, segundo julgo saber, colheu desde logo — e para sempre — o seu favor).
Ora, segue-se — e era aqui, e aqui mesmo, que eu, finalmente, queria chegar — que já depois de ter eu enaltecido o incomparável e adusto estilista de Trás-os-Montes (que não de Trás-os-Vales...), a bordo d`«A Rua», o director desta — ele, também, e também ele, figura emblemática, e exemplo galvanizador de tenacidade e de talento — adregou tirar uns curtos e merecidos diazinhos de férias, e calhou de ir gozá-los para o Vale do Mondego. (A família da senhora sua mulher, e minha senhora, é natural dali, me parece.).
Compadre Múrias pegou — e, agarrando a ocasião pela raiz dos cabelos, não resistiu à tentação de dar então uma saltada ao coração de Coimbra, e vá de apresentar-se no consultório de Torga, na qualidade (na «falta de qualidade» digo) de paciente, que andasse à cata de cura e remédio para males de ouvidos, nariz e garganta.
O otorrinolaringologista observou as «ventas» do polemista, e aviou-lhe a receita.
Manuel Maria Múrias deitou uma olhadela transversal à prescrição médica, e comentou:
— Terapêutica tradicional!
A conversa derivou, de caminho, para a porca de política.
Às tantas, exclama o Torga: — «Vocês, lá n`«A Rua», são brutos com`às casas! Aquilo é que tem sido malhar no gentio.»
— «Terapêutica tradicional!» — atalhou, de pronto, o Manuel Múrias.
E riram, em uníssono, os dois, a bom rir. Que não era o caso para menos, convenhamos.
Prouvera que o leitor destas laudas fizesse agora outro tanto... Já eu daria por cumprida, e bem cumprida, a função profiláctica das mesmas.
Rodrigo Emílio

(Casa de São José, em Parada de Gonta,
na noite de 12 para 13 de Maio de 1996).

In Diário do Minho, 22.05.1996.

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