SALAZAR NO MEU CAMINHO
Quem hoje quiser saber por onde param os nossos mestres, dê uma volta pelos cemitérios. Assim se exprimia há anos — por estas mesmas palavras, ou por meio de outras equivalentes — um dos espíritos mais fascinantes da direita literária francesa: Antoine Blondin. E se me ocorre lembrar, aqui, asserto tão melancólico como esse, no dealbar deste trabalho que a veneração está a ditar em honra, memória e louvor do Presidente Salazar, e que se quer trabalho de rendida homenagem — mas de homenagem tributada tão-somente pelo estudo — à sua meritíssima acção de estadista (e mormente à que ele desenvolveu no capítulo da chamada política ultramarina), não é lá que eu esteja cem-por-cento de acordo com o amargo postulado de Blondin. E digo já porquê. A mim se me afigura, com efeito, que partir à descoberta, e marchar ao encontro, ou ao reencontro, de um mestre, do qual a morte já se tenha apoderado, não consiste só (nem consiste tanto) em ir de visita ao cemitério onde ele jaz; bem mais importante me parece tratar de empreender, à velocidade de cruzeiro, toda uma viagem de longo-curso à obra em que ele vive e revive, e mercê da qual a si próprio sobrevive. E foi isso o que fiz com Salazar.
Ainda assim, não deixa de assistir a Blondin boa dose de razão, quando sugere o que sugere àqueles de nós, que estejam porventura interessados em indagar o paradeiro de quantos guias e mestres viemos elegendo ao longo do caminho — e quando nesse sentido nos concita a ir em demanda deles, já só ao único sítio em que os mesmos podem receber visitas. Por isso nos convida a dar um giro pelos cemitérios. No do Vimieiro, tem a gente encontro marcado com alguém que nos foi mestre. Repousa ali um maiores preceptores de sempre do nosso destino histórico. Uma vez ao ano, quanto mais não seja, lá me reclino e ajoelho, à beira da campa-rasa onde ele descansa dos trabalhos e dos dias.
Não destoarão aqui, pensou eu, algumas páginas de memórias, relativamente pessoais. Assim...
***
...Quis o acaso que eu embarcasse para a Província de Moçambique, em missão de soberania, como alferes-miliciano do Corpo Expedicionário, exactamente no dia em que Salazar dava entrada no Hospital da Cruz Vermelha, a fim de se submeter à intervenção cirúrgica que viria a estar na origem do grave acidente cardiovascular, e da consequente hemiplegia, que ao depois o invalidariam. Foi, a bem dizer, à última hora, e já em pleno cais de Alcântara-Mar — momentos antes de ser chamado a escalar o portaló — que do facto tomei conhecimento. Quem mo segredou ao ouvido, uma única coisa me implorou, encarecidamente, logo ali, a troco de tão preocupante revelação: guardar, quanto a esta, rigoroso sigilo, do ponto em que a mesma estava longe de ser do domínio público.
Os dias transatlânticos que se seguiram — dezassete dias, ao todo — foram vividos, como é de calcular, no meio da mais arrasante e angustiada expectativa. Salazar debatia-se entre a vida e a morte — e os boletins noticiosos, que duas vezes ao dia, eram afixados a bordo, traziam o navio em peso suspenso das melhoras e das recaídas desconcertantes, que o estado clínico do Presidente alternadamente ia registando.
Estava entretanto escrito que eu haveria de arribar a terra firme, ainda antes de se proceder à rendição de Salazar na chefia do governo. Teria, quando muito, meia-dúzia de dias de Lourenço Marques — e encontrava-me, por sinal, episodicamente, numa das dependências do Notícias local — quando me foi dado escutar pela rádio o comunicado oficial atinente à sucessão.
Mais cinco meses, porém (e bem nevrálgicos...) haviam de passar, até que Salazar saísse da agonia — e o seus padecimentos, bem como o clima de sobressalto constante, que um pouco por todo o espaço português se respirava (e eu por Moçambique falo!), conhecessem, finalmente, algumas tréguas. Ao cabo de meses consecutivos às portas da morte, a lutar com ela corpo-a-corpo, a medir-se com ela de igual para igual, o augusto Presidente inscrevia-se, heróica e estoicamente, na linha da melhor têmpera lusíada: a que ensina a morrer, sim, mas devagar.
Ao longo desse tempo todo, Portugal inteiro foi com Salazar de uma abnegação insone; observou com ele uma vigília incessante. Por mim, posso atestar o extremo apego com que o Povo da Província, que me tocara pela porta servir e defender, permaneceu aferrado à cabeceira daquele, à cabeça do Império, verticalmente se tinha mantido, durante quarenta e dois anos de vigia e de cuidados. E quando Salazar, em Fevereiro de 69, teve alta da Cruz Vermelha, e a sua presença outra vez se fez sentir — conquanto fisicamente diminuída — na vetusta moldura de São Bento, então exultaram, radiantes, as gentes do Índico, como se um ressurgimento político se tratara e como se a ponte-de-comando da Nação já de novo estivesse entregue à capitania do velho estadista.
A realidade, no entanto, era bem outra: Salazar tinha os dias contados. Viria a morrer daí a ano e meio.
«Só os homens realmente simples e verdadeiramente grandes estão seguros de ter uma morte bem sua. Os outros por imitação», observou certo dia Jean Guéheno, com percutante pertinência. Salazar pertencia ao número dos primeiros: teve o que se chama uma morte bem sua. Ela sobreveio quase no termo da minha comissão militar.
Dois anos antes, embarcara em Lisboa sob o signo (e o mau augúrio) da sua doença. A Lisboa regressava agora, vergado ao peso e ao luto da sua morte, e ao vazio da sua ausência. Um generalizado sentimento de orfandade nacional já de tudo e de todos, então, se apossava. E de mim também.
Rodrigo Emílio
In A Rua, n.º 54, pág. 10, 14.04.1977.
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