«Quem teria sido o sarcasta de génio que inventou esta expressão sem par do — povo soberano? No seu espírito se amalgamavam Diogenes e Aristofanes, Rabelais e Voltaire. Porque a expressão é hipersarcástica e só encontra par, em grandeza, na palavra famosa que António Maia atirou à cara do Parlamento, em sessão pública, diante dos deputados, diante do corpo diplomático, diante da História, dita claramente com todos os acentos e todas as letras, para que a acta não pudesse alegar ignorância. Deve ser curiosa a acta da Câmara dos Deputados referente ao dia célebre...
O Povo Soberano!
Os srs. já viram coisa mais pungente, mais trágica, mais macabra do que essa ideia do povo soberano?
Enquanto a fantasia dos ideólogos não descobriu a soberania do povo, o povo era feliz. Trabalhava nos campos, nas oficinas e nos seus misteres: poetava; cronicava; descobria novas terras, novos mundos, novos mares; erguia as pirâmides do Egipto; criava a arquitectura grega; escrevia a Eneida e a Divina Comédia; enchia as páginas do martirológio cristão; formava os impérios dos Carlos Magnos e dos Carlos quintos; elaborava a sínteses filosóficas de Aristóteles e S. Tomás; numa palavra: atingiu os altos cumes da civilização. Essa maravilha das maravilhas que é Europa da Idade-Média, quando a Cruz e a Espada aliadas e irmanadas são o símbolo máximo da Ordem máxima, foi obra do Povo, — mas não do Povo Soberano.
Mas um dia, começaram a dizer ao Povo que ele era soberano. E quando o Povo, convencido da sua soberania, na ilusão de que lhe era possível efectivá-la, a reclamou, e o Poder constituído e legítimo se viu obrigado a reconhecer-lha, — o Povo talhou por suas próprias mãos, a mais pesada, a mais execranda das tiranias.
Nunca o Povo foi tão escravo como no dia em que começou a ser soberano! E quanto mais soberano se julga, tanto mais escravo na realidade, ele é.
Enquanto o Povo não era soberano, tinha à sua frente o Rei. Algumas vezes o Rei foi mau Rei. Também muitas vezes o Pai é mau Pai, e ninguém caiu ainda na demência de querer destruir o poder paternal.
Algumas vezes, o Rei foi mau Rei. Mas as excepções só servem para que a regra se confirme. E a História do mundo civilizado está aí a mostrar claramente o que foi obra do Rei. E quando o Rei foi mau Rei, o Povo sabia quem era mau, e a História pegou no mau Rei e focou-lhe a maldade.
Mas o Povo fez-se soberano. E a inépcia humana aclamou a soberania do Povo. E ao Rei ou o eliminaram ou o manietaram: quer dizer; destruíram-no. E substituíram-no por quem? Pela soberania do Povo.
O que é a soberania do Povo? A soberania do Povo é a tirania irresponsável e anónima. É a tirania dos partidos políticos. É a tirania das manobras dos clubs e dos grupos. É a tirania do acaso eleitoral. É a tirania do voto conquistado ou pela compra, ou pela vigarice, ou pela ameaça, ou pelo interesse mesquinho de uma coterie. É a tirania do Número contra a Razão. É a tirania do Número contra a Inteligência. É a tirania do Número contra o Saber. É a tirania do Número contra a Bondade. É a verdadeira tirania da Força contra o Direito.
A soberania do Povo é a negação do próprio Povo, porque é a sua sujeição à mais cobarde das tiranias: a do Número irresponsável e anónimo.
Quem governa, no Povo soberano? O voto. Quem decide sobre a Guerra e sobre a Paz? O voto. Quem resolve os problemas da Instrução, da Higiene, da Defesa nacional, do Fomento, das Colónias, da Ordem, da Moral? O voto. Quem julga o Passado do Povo? O voto. Quem prepara o Futuro do Povo? O voto. Mas quem é o voto? O voto é a mistificação legal. Quem governa, no Povo soberano, é a mistificação.
Havia não sei onde um candidato eleitoral, que ficou muito surpreendido com o resultado da eleição. E tendo-o encontrado alguém a caminho do cemitério da sua terra, na tarde da sua derrota, perguntou o que ia fazer para aquelas bandas isoladas e desoladas.
O candidato respondeu: «vou perguntar aos mortos da minha terra que mal lhes fiz eu para que votassem todos de chapa contra mim.»
Aqui, no nosso País, em que o povo é soberaníssimo, há assembleias eleitorais em que votam todos os eleitores, não tendo comparecido um. Em Paris, nas últimas eleições constatou-se que grande número de eleitores não residiam nas moradas indicadas, e ninguém sabia deles. O resultado foi como se toda a gente os conhecesse na intimidade. E perante o resultado das eleições, já se lê na mais ponderada e ortodoxa imprensa democrata, que o Povo soberano não queria o que os vitoriosos estão fazendo. Essa é boa! Se a maioria, se o voto, se o Número pertence à fauna demagoga — que têm os democratas que discutir, que observar, que contrapor? Nada. O Voto, o Número, a Maioria, numa palavra, a Democracia decidiu. Logo, aos vencidos cumpre obedecer.
Mistificação? Sim, para nós, a quem nada repugna tanto, como ver o nosso pensamento dominado por dois votos, como ver a nossa cultura vencida por dois votos, como ver a nossa competência inutilizada por dois votos. Mas para os democratas, para os partidários do Sufrágio, do Voto, do Número, para os democratas — não. Esses devem sujeitar-se, submeter-se às conclusões lógicas dos seus princípios. Ou o sufrágio só é bom, quando é a meu favor? O voto só é livre, quando vota em mim? O Número só é legítimo, quando está comigo?
O Povo soberano! O que fizeram do Povo, quando o proclamaram Soberano! O que era uma força útil foi transformado em degrau para todos os aventureiros, para todos os traficantes, para todos os comediantes sem escrúpulos e sem vergonha.
Do Povo útil, fizeram um esfregão em que todas as torpezas se limparam. Do Povo útil, conduzido por uma vontade consciente e responsável, fizeram um bando dirigido pelo capricho anónimo e irresponsável.»(1)
O Povo Soberano!
Os srs. já viram coisa mais pungente, mais trágica, mais macabra do que essa ideia do povo soberano?
Enquanto a fantasia dos ideólogos não descobriu a soberania do povo, o povo era feliz. Trabalhava nos campos, nas oficinas e nos seus misteres: poetava; cronicava; descobria novas terras, novos mundos, novos mares; erguia as pirâmides do Egipto; criava a arquitectura grega; escrevia a Eneida e a Divina Comédia; enchia as páginas do martirológio cristão; formava os impérios dos Carlos Magnos e dos Carlos quintos; elaborava a sínteses filosóficas de Aristóteles e S. Tomás; numa palavra: atingiu os altos cumes da civilização. Essa maravilha das maravilhas que é Europa da Idade-Média, quando a Cruz e a Espada aliadas e irmanadas são o símbolo máximo da Ordem máxima, foi obra do Povo, — mas não do Povo Soberano.
Mas um dia, começaram a dizer ao Povo que ele era soberano. E quando o Povo, convencido da sua soberania, na ilusão de que lhe era possível efectivá-la, a reclamou, e o Poder constituído e legítimo se viu obrigado a reconhecer-lha, — o Povo talhou por suas próprias mãos, a mais pesada, a mais execranda das tiranias.
Nunca o Povo foi tão escravo como no dia em que começou a ser soberano! E quanto mais soberano se julga, tanto mais escravo na realidade, ele é.
Enquanto o Povo não era soberano, tinha à sua frente o Rei. Algumas vezes o Rei foi mau Rei. Também muitas vezes o Pai é mau Pai, e ninguém caiu ainda na demência de querer destruir o poder paternal.
Algumas vezes, o Rei foi mau Rei. Mas as excepções só servem para que a regra se confirme. E a História do mundo civilizado está aí a mostrar claramente o que foi obra do Rei. E quando o Rei foi mau Rei, o Povo sabia quem era mau, e a História pegou no mau Rei e focou-lhe a maldade.
Mas o Povo fez-se soberano. E a inépcia humana aclamou a soberania do Povo. E ao Rei ou o eliminaram ou o manietaram: quer dizer; destruíram-no. E substituíram-no por quem? Pela soberania do Povo.
O que é a soberania do Povo? A soberania do Povo é a tirania irresponsável e anónima. É a tirania dos partidos políticos. É a tirania das manobras dos clubs e dos grupos. É a tirania do acaso eleitoral. É a tirania do voto conquistado ou pela compra, ou pela vigarice, ou pela ameaça, ou pelo interesse mesquinho de uma coterie. É a tirania do Número contra a Razão. É a tirania do Número contra a Inteligência. É a tirania do Número contra o Saber. É a tirania do Número contra a Bondade. É a verdadeira tirania da Força contra o Direito.
A soberania do Povo é a negação do próprio Povo, porque é a sua sujeição à mais cobarde das tiranias: a do Número irresponsável e anónimo.
Quem governa, no Povo soberano? O voto. Quem decide sobre a Guerra e sobre a Paz? O voto. Quem resolve os problemas da Instrução, da Higiene, da Defesa nacional, do Fomento, das Colónias, da Ordem, da Moral? O voto. Quem julga o Passado do Povo? O voto. Quem prepara o Futuro do Povo? O voto. Mas quem é o voto? O voto é a mistificação legal. Quem governa, no Povo soberano, é a mistificação.
Havia não sei onde um candidato eleitoral, que ficou muito surpreendido com o resultado da eleição. E tendo-o encontrado alguém a caminho do cemitério da sua terra, na tarde da sua derrota, perguntou o que ia fazer para aquelas bandas isoladas e desoladas.
O candidato respondeu: «vou perguntar aos mortos da minha terra que mal lhes fiz eu para que votassem todos de chapa contra mim.»
Aqui, no nosso País, em que o povo é soberaníssimo, há assembleias eleitorais em que votam todos os eleitores, não tendo comparecido um. Em Paris, nas últimas eleições constatou-se que grande número de eleitores não residiam nas moradas indicadas, e ninguém sabia deles. O resultado foi como se toda a gente os conhecesse na intimidade. E perante o resultado das eleições, já se lê na mais ponderada e ortodoxa imprensa democrata, que o Povo soberano não queria o que os vitoriosos estão fazendo. Essa é boa! Se a maioria, se o voto, se o Número pertence à fauna demagoga — que têm os democratas que discutir, que observar, que contrapor? Nada. O Voto, o Número, a Maioria, numa palavra, a Democracia decidiu. Logo, aos vencidos cumpre obedecer.
Mistificação? Sim, para nós, a quem nada repugna tanto, como ver o nosso pensamento dominado por dois votos, como ver a nossa cultura vencida por dois votos, como ver a nossa competência inutilizada por dois votos. Mas para os democratas, para os partidários do Sufrágio, do Voto, do Número, para os democratas — não. Esses devem sujeitar-se, submeter-se às conclusões lógicas dos seus princípios. Ou o sufrágio só é bom, quando é a meu favor? O voto só é livre, quando vota em mim? O Número só é legítimo, quando está comigo?
O Povo soberano! O que fizeram do Povo, quando o proclamaram Soberano! O que era uma força útil foi transformado em degrau para todos os aventureiros, para todos os traficantes, para todos os comediantes sem escrúpulos e sem vergonha.
Do Povo útil, fizeram um esfregão em que todas as torpezas se limparam. Do Povo útil, conduzido por uma vontade consciente e responsável, fizeram um bando dirigido pelo capricho anónimo e irresponsável.»(1)
Nota:
(1) - In O Povo Soberano, in «A Época», n.º 1763, p. 1, 15.06.1924.
1 comentário:
Extraordinário depoimento. Todo este apontar o dedo por A.P. aos vigaristas, corruptos, mentirosos e ladrões das democracias do seu tempo, poderia ser transposto palavra por palavra para o presente e para a democracia que estamos a viver. Melhor, para todas as democracias do mundo. Porque todas elas mais não são do que tiranias hàbilmente travestidas de democracias e os respectivos povos, seus escravos. Escravos a quem, através de subtís e permanentes lavagens cerebrais muito bem camufladas, convenceram que são eles o povo soberano (como brilhantemente frisa A.P.) e que é ele, povo, quem comanda o sistema democrático através do voto.
"Povo soberano"! Epíteto grandiloquente de que os democratas/tiranos se apoderaram criminosamente há décadas para, num processo, por repetição, alienante, levarem os eleitores/escravos, dóceis e crentes por natureza, a depositar religiosamente o seu voto na urna.
Povo soberano uma grandessíssima ova.
Maria
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