24.10.08

Covadonga e Pelágio!


“Os que têm lido a história daquela época sabem que a batalha de Cangas de Onis foi o primeiro elo dessa cadeia de combates que, prolongando-se através de quase oito séculos, fez recuar o Corão para as praias de África e restituiu ao Evangelho esta boa terra de Espanha, terra, mais que nenhuma, de mártires. Na batalha de junto de Auseba foram vingados os valentes que pereceram nas margens do Chrysus; porque mais de vinte mil sarracenos viram pela última vez a luz do Sol naquelas tristes solidões. Mas, nesse dia de punição, esta devia abranger assim os infiéis, como os que lhes haviam vendido a pátria e que ainda vinham disputar a seus irmãos a dura liberdade de que gozavam nas brenhas intratáveis das Astúrias.
O ardil de Pelágio para resistir com vantagem aos muçulmanos, cem vezes mais numerosos que os cristãos, surtira o desejado efeito. Ainda que muito a custo, os cavaleiros enviados em cilada para a floresta à esquerda das gargantas de Covadonga puderam chegar aí sem serem sentidos dos árabes, que se haviam aproximado mais cedo do que o fizera crer a narração do velho Velido. Os infiéis pararam nas bordas do Deva, no sítio em que rompia do vale, e os seus almogaures tinham ousado penetrar avante. Os cavaleiros da cilada, que a pouca distância passavam manso e manso, ouviram distintamente o tropear dos ginetes inimigos.
Mas, quando, ao primeiro alvor da manhã, Pelágio se encaminhava com o seu pequeno esquadrão para a garganta das serras, já os árabes rompiam por ela e começavam a espraiar-se, como ribeira que, saindo de leito apertado, se dilata pela campina. Os cristãos recuaram, e os infiéis, atribuindo ao temor esta fuga simulada, precipitaram-se após eles. Pouco a pouco, o duque de Cantábria atraiu-os para a entrada da gruta de Covadonga. Chegado ali, pondo à boca a sua buzina, tirou um som prolongado. Imediatamente os cimos dos rochedos, que pareciam inacessíveis, cobriram-se de fundibulários e frecheiros, e uma nuvem de tiros choveu de toda a parte sobre os africanos e sobre os renegados godos. Vacilaram; mas o desejo da vingança levou-os a apinharem-se, esquadrões, à entrada da caverna, onde, finalmente, encontravam desesperada resistência. Então, como se despegassem do céu, grandes rochedos começaram a rolar sobre eles dos cimos do precipício que lhes ficava sobranceiro. Mãos invisíveis os impeliam. Cada rocha traçava no meio daquele vulto informe que oscilava, naquela vasta planície de alvos turbantes e de capacetes reluzentes, uma escura mancha, semelhante a chaga horrível. Eram dez ou vinte guerreiros, cujos membros esmagados, cujos ossos triturados, cujo sangue confundido espirravam por cima das frontes dos seus companheiros. Era medonho!, porque a esse espectáculo se ajuntava o grito de raiva e desesperação dos pelejadores, grito feroz e agudo, só comparável ao bramido de cem loas a quem os caçadores assinalaram profundamente os elmos de Opas e Juliano. No mesmo momento mais três ferros reluziam.
Um contra três! Era um combate calado e temeroso. O cavaleiro da Cruz parecia desprezar Mugueiz: os seus golpes retiniam só nas armaduras dos dois godos. Primeiro o velho Opas, depois Juliano caíram.
Então, recuando, o guerreiro cristão exclamou:
- Meu Deus! Meu Deus! Possa o sangue do mártir remir o crime do presbítero!
E, largando o franquisque, levou as mãos ao capacete de bronze e arrojou-o para longe de si.
Mugueiz, cego de cólera, vibrara a espada: o crânio do seu adversário rangeu, e um jorro de sangue salpicou as faces sarraceno.

Como tomba o abeto solitário da encosta ao passar do furacão, assim o guerreiro misterioso do Chrysus caía para não mais se erguer!...
Nessa noite, quando Pelágio voltou à caverna, Hermengarda, deitada sobre o seu leito, parecia dormir. Cansado do combate e vendo-a tranquila, o mancebo adormeceu, também, perto dela, sobre o duro pavimento da gruta. Ao romper da manhã, acordou ao som de cântico suavíssimo. Era sua irmã que cantava um dos hinos sagrados que muitas vezes ele ouvira entoar na Catedral de Tárraco. Dizia-se que o seu autor fora um presbítero da diocese de Hispalis, chamado Eurico.
Quando Hermengarda acabou de cantar ficou um momento pensando. Depois, repentinamente, soltou uma destas risadas que fazem erriçar os cabelos, tão tristes, soturnas e dolorosas são elas: tão completamente exprimem irremediável alienação de espírito.
A desgraçada tinha, de feito, enlouquecido.”

In Eurico, o Presbítero, Biblioteca Essencial, 2007, pp.238/243.

3 comentários:

Marcos Pinho de Escobar disse...

Mas agora teremos um túnel magrebo-ibérico para facilitar, ainda mais, o regresso da rapaziada, de Mafoma e tutti quanti. A vontade dos federastas não se discute: Finis Europae.
Abraço amigo.

Aécio disse...

O "Eurico" deveria ser de leitura obrigatória. Já o Grande Herculano quando o escreveu desejava o regresso a um tempo em que a Honra e a Palavra entre outros valores voltassem a ter algum peso.
Tenho para mim que toda a obra é ainda (como era na altura) uma crítica.
À deterioração dos valores, aos estrangeirados que vendem a Pátria por algumas moedas de prata e esencialmente a cada um dos que prefere olhar para o lado e nada fazer perante a ignomínia.
Franquisques e fundas ao alto os verdadeiros filhos do Hermínio lutam...
Primeira vez que passei por cá, farei por voltar.
Cordialmente

Anónimo disse...

Já o li há tanto tempo.....
Fizeste com que o vá reler
Obrigado Nonas

beijinho