É preciso entender no Ocidente que a Rússia foi a mais fiel aliada da pequena península asiática da Europa. Contido na sua continentalidade pela Grã-Bretanha, o espaço russo soube responder às provocações napoleónicas, conduzindo o hegemonista francês a um beco sem saída e, depois, o ditador germânico a uma derrota humilhante e a um recuo de tropas que só terminou em Berlim.
Não há dúvida de que a Rússia, nas suas duas versões de Império czarista e URSS, contribuiu de forma não despicienda para o equilíbrio da Europa e também, depois, para o equilíbrio com o super-poder emergente, os Estados Unidos, mantendo-o em guarda até à queda da Alemanha Oriental e muro de Berlim e ao subsequente esboroamento do poder em Moscovo .
É a partir do fim da Guerra Fria que se assiste à exorbitância do poder americano, num intervencionismo sem limites, agindo descoordenadamente, em nome de uma teologia que já tinha feito provas negativas em muitos lados. Uma teologia da democracia para todos, como se isso fosse possível; uma teologia dos direitos humanos, como se tal fosse evidente na natureza das coisas e mesmo entre os animais; uma teologia do mercado capitalista, como se fosse uma forma de parúsia igualmente evidente.
O que ainda detém a fronteira americana é o Heartland russo, a fortaleza natural da Terra e, muito especialmente, o coração do que se chama Eurásia, uma terra que se encontra para lá da cadeia dos Montes Urais, como definiu Sir Halford Mackinder no seu famoso livro “Democratic Ideals and Reality”. Então, para os fins designados de obter espaço de manobra para intervir no próprio Heartland que Napoleão e Hitler desejaram controlar, a potência marítima atravessa o seu Mare Nostrum, o Atlântico, e obriga virtualmente a fronteira da Nato, já sem especificidades funcionais, a alastrar aos ‘limes’ russos e a tocar os Urais. A isto somando-se desafios directos e chocantes no Afeganistão, no Iraque e sobretudo na Geórgia, onde os russos reponderam apropriadamente. O exagero da política externa americana, pelos vistos apoiada por Portugal, é ditado pela sua compreensão da aparente fraqueza da Federação Russa, mas isso é esquecer as lições da História e da Geopolítica dos Espaços.
A insensatez desta manobra é evidente. A Nato tem uma definição na sua carta fundacional e nada diz respeito à provocação da potência continental, que continua a estar onde sempre esteve: no Heartland de Mackinder. A tentativa actual de encontrar uma nova estratégia para a Nato é evidente, porque carece de objectivos se lhe retirarmos o interesse nacional da América do Norte.
Por outro lado, nada se sabe das reacções que essa atitude americana, que arrasta os seus parceiros europeus, pode provocar. O sentido de assédio já deu maus resultados no passado e alguns comentaristas acham que se passa o mesmo com os árabes, que de algum modo se sentem cercados pela cultura globalizante do Ocidente. Mas aqui, especificamente, não é isso: aqui, do que se trata é de que a aliança militar avança sobre os despojos da URSS e ergue e integra países párias que assim se sentem mais ou menos protegidos de Moscovo. Moscovo mudou, mas para a superpotência marítima isso tem pouca importância porque permanecerão, por conveniência, os maus da fita. São definidos como os apoiantes dos assassinos da Sérvia, como os amigos de Sadam, como os opressores da Europa Oriental (quando foi Roosevelt que entregou a Europa de Leste a Stalin de mão beijada, em troca do seu apoio na guerra contra o Japão).
Para nós, europeus, a questão é outra. Estamos perto da fronteira disputada e tudo indica que apoiamos as iniciativas americanas que se tornaram a chefia “esclarecida” da Nato. A Rússia e o seu poder, militar, económico, de recursos naturais, encontra-se aqui ao lado. A Rússia não é a África. Séculos de civilização tornaram-na próxima, colaborante, amiga e parceira. Seria tenebroso dispensar este somatório de culturas para disputar fronteiras e criar um património de acrimónia só porque o revanchismo alemão assim o exige ao irmão mais novo, interessando-o de novo na aventura que falhou com Hitler.
O Kosovo já foi demais – um “Estado pária” formado por bandidos armados segundo as linhas americanas (que já se viu o que fizeram no Afeganistão e no Vietname). O que se fez com a Sérvia brada ao falecido Direito Internacional, o que se executa nos restos do Império Britânico, naquilo a que os colonizadores vieram a chamar Iraque, não é de morrer a rir porque morre gente demais. Ou não há visão geopolítica ou, então, há visão a mais.
O Kosovo era uma espécie de núcleo geo-histórico sérvio, tanto mais que foi aí que as suas tropas resistiram aos turcos e aí morreu a flor da sua aristocracia guerreira, para impedir o avanço sobre Viena e o resto da Europa. Zona de fronteira, terra sagrada de sérvios, polvilhada de igrejas ortodoxas de alta construção e de bela estirpe artística parietal, a zona foi aberta por Tito aos albaneses, que não deixaram de aproveitar a oportunidade. Vindos das montanhas da Squipheria, tinham chegado ao paraíso, mas os símbolos sérvios, para estes muçulmanos, estavam a mais. Tito morreu, os Balcãs incendiaram-se em conflitos étnicos e territoriais e um conjunto de bandidos viu a sua oportunidade. Os movimentos de libertação de nada, especializados em traficar carne branca, armas, drogas e contrabando por todo aquele espaço, viram-se acarinhados e elevados ao papel de grandes políticos graças à boa vontade dos Estados Unidos, que via com bom olhos uma plataforma sua nos Balcãs. E assim se fez, humilhando novamente a Sérvia e a sua aliada natural, a Rússia. Mas os russos não esquecem. Os americanos jogam longe de casa, mas acontece que os europeus jogam em casa como nas duas guerras que já tiveram oportunidade de experimentar, para lá de muitas que deixaram marcas na terra e no sangue vertido sobre as belas planícies do centro da Europa por questões ocas de religião e por questões de fronteira.
Porquê tantas diligências por parte da chefia americana da Nato?
Não há nenhuma necessidade estratégica de ocupar posições à volta da fronteira russa actual, a não ser para pressionar e espicaçar um urso dormente. A Rússia, agora, não ameaça qualquer país e anseia por uma oportunidade de colaboração real com a Europa, que o governo inspirado por Putin continua a avaliar como um bom parceiro económico, tecnológico e estratégico. Não convém à Europa outra estratégia que a de uma colaboração militar, energética e comercial com a Rússia, porque se tornou um espaço debilitado, tutelado, desmobilizado, enfraquecido e sem poder de projecção de forças militares. A Europa enfraqueceu e enriqueceu e, como já se disse, é aquele gigante gordo com pés de barro. Deveria ter consciência disso entre os frequentes jantares e almoços a que se entregam os chefes dos países que a integram.
A Rússia, do ponto de vista estratégico, é um complemento directo da Europa e que ela poderia revitalizar com capital, tecnologia e trabalho especializado. De facto, o Eldorado está ali. Só que o poder atlântico não concorda com este desígnio e prefere a hostilidade sem motivo, a provocação sem necessidade. Mas, sobretudo, o poder marítimo USA pode esperar uma resposta longe do seu território e das suas cidades, enquanto nós, aqui e agora, senti-la-emos muito perto. A Rússia não é um anão militar, não é um pigmeu tecnológico, e sobretudo está longe de ser um Estado pobre.
Não há dúvida de que a Rússia, nas suas duas versões de Império czarista e URSS, contribuiu de forma não despicienda para o equilíbrio da Europa e também, depois, para o equilíbrio com o super-poder emergente, os Estados Unidos, mantendo-o em guarda até à queda da Alemanha Oriental e muro de Berlim e ao subsequente esboroamento do poder em Moscovo .
É a partir do fim da Guerra Fria que se assiste à exorbitância do poder americano, num intervencionismo sem limites, agindo descoordenadamente, em nome de uma teologia que já tinha feito provas negativas em muitos lados. Uma teologia da democracia para todos, como se isso fosse possível; uma teologia dos direitos humanos, como se tal fosse evidente na natureza das coisas e mesmo entre os animais; uma teologia do mercado capitalista, como se fosse uma forma de parúsia igualmente evidente.
O que ainda detém a fronteira americana é o Heartland russo, a fortaleza natural da Terra e, muito especialmente, o coração do que se chama Eurásia, uma terra que se encontra para lá da cadeia dos Montes Urais, como definiu Sir Halford Mackinder no seu famoso livro “Democratic Ideals and Reality”. Então, para os fins designados de obter espaço de manobra para intervir no próprio Heartland que Napoleão e Hitler desejaram controlar, a potência marítima atravessa o seu Mare Nostrum, o Atlântico, e obriga virtualmente a fronteira da Nato, já sem especificidades funcionais, a alastrar aos ‘limes’ russos e a tocar os Urais. A isto somando-se desafios directos e chocantes no Afeganistão, no Iraque e sobretudo na Geórgia, onde os russos reponderam apropriadamente. O exagero da política externa americana, pelos vistos apoiada por Portugal, é ditado pela sua compreensão da aparente fraqueza da Federação Russa, mas isso é esquecer as lições da História e da Geopolítica dos Espaços.
A insensatez desta manobra é evidente. A Nato tem uma definição na sua carta fundacional e nada diz respeito à provocação da potência continental, que continua a estar onde sempre esteve: no Heartland de Mackinder. A tentativa actual de encontrar uma nova estratégia para a Nato é evidente, porque carece de objectivos se lhe retirarmos o interesse nacional da América do Norte.
Por outro lado, nada se sabe das reacções que essa atitude americana, que arrasta os seus parceiros europeus, pode provocar. O sentido de assédio já deu maus resultados no passado e alguns comentaristas acham que se passa o mesmo com os árabes, que de algum modo se sentem cercados pela cultura globalizante do Ocidente. Mas aqui, especificamente, não é isso: aqui, do que se trata é de que a aliança militar avança sobre os despojos da URSS e ergue e integra países párias que assim se sentem mais ou menos protegidos de Moscovo. Moscovo mudou, mas para a superpotência marítima isso tem pouca importância porque permanecerão, por conveniência, os maus da fita. São definidos como os apoiantes dos assassinos da Sérvia, como os amigos de Sadam, como os opressores da Europa Oriental (quando foi Roosevelt que entregou a Europa de Leste a Stalin de mão beijada, em troca do seu apoio na guerra contra o Japão).
Para nós, europeus, a questão é outra. Estamos perto da fronteira disputada e tudo indica que apoiamos as iniciativas americanas que se tornaram a chefia “esclarecida” da Nato. A Rússia e o seu poder, militar, económico, de recursos naturais, encontra-se aqui ao lado. A Rússia não é a África. Séculos de civilização tornaram-na próxima, colaborante, amiga e parceira. Seria tenebroso dispensar este somatório de culturas para disputar fronteiras e criar um património de acrimónia só porque o revanchismo alemão assim o exige ao irmão mais novo, interessando-o de novo na aventura que falhou com Hitler.
O Kosovo já foi demais – um “Estado pária” formado por bandidos armados segundo as linhas americanas (que já se viu o que fizeram no Afeganistão e no Vietname). O que se fez com a Sérvia brada ao falecido Direito Internacional, o que se executa nos restos do Império Britânico, naquilo a que os colonizadores vieram a chamar Iraque, não é de morrer a rir porque morre gente demais. Ou não há visão geopolítica ou, então, há visão a mais.
O Kosovo era uma espécie de núcleo geo-histórico sérvio, tanto mais que foi aí que as suas tropas resistiram aos turcos e aí morreu a flor da sua aristocracia guerreira, para impedir o avanço sobre Viena e o resto da Europa. Zona de fronteira, terra sagrada de sérvios, polvilhada de igrejas ortodoxas de alta construção e de bela estirpe artística parietal, a zona foi aberta por Tito aos albaneses, que não deixaram de aproveitar a oportunidade. Vindos das montanhas da Squipheria, tinham chegado ao paraíso, mas os símbolos sérvios, para estes muçulmanos, estavam a mais. Tito morreu, os Balcãs incendiaram-se em conflitos étnicos e territoriais e um conjunto de bandidos viu a sua oportunidade. Os movimentos de libertação de nada, especializados em traficar carne branca, armas, drogas e contrabando por todo aquele espaço, viram-se acarinhados e elevados ao papel de grandes políticos graças à boa vontade dos Estados Unidos, que via com bom olhos uma plataforma sua nos Balcãs. E assim se fez, humilhando novamente a Sérvia e a sua aliada natural, a Rússia. Mas os russos não esquecem. Os americanos jogam longe de casa, mas acontece que os europeus jogam em casa como nas duas guerras que já tiveram oportunidade de experimentar, para lá de muitas que deixaram marcas na terra e no sangue vertido sobre as belas planícies do centro da Europa por questões ocas de religião e por questões de fronteira.
Porquê tantas diligências por parte da chefia americana da Nato?
Não há nenhuma necessidade estratégica de ocupar posições à volta da fronteira russa actual, a não ser para pressionar e espicaçar um urso dormente. A Rússia, agora, não ameaça qualquer país e anseia por uma oportunidade de colaboração real com a Europa, que o governo inspirado por Putin continua a avaliar como um bom parceiro económico, tecnológico e estratégico. Não convém à Europa outra estratégia que a de uma colaboração militar, energética e comercial com a Rússia, porque se tornou um espaço debilitado, tutelado, desmobilizado, enfraquecido e sem poder de projecção de forças militares. A Europa enfraqueceu e enriqueceu e, como já se disse, é aquele gigante gordo com pés de barro. Deveria ter consciência disso entre os frequentes jantares e almoços a que se entregam os chefes dos países que a integram.
A Rússia, do ponto de vista estratégico, é um complemento directo da Europa e que ela poderia revitalizar com capital, tecnologia e trabalho especializado. De facto, o Eldorado está ali. Só que o poder atlântico não concorda com este desígnio e prefere a hostilidade sem motivo, a provocação sem necessidade. Mas, sobretudo, o poder marítimo USA pode esperar uma resposta longe do seu território e das suas cidades, enquanto nós, aqui e agora, senti-la-emos muito perto. A Rússia não é um anão militar, não é um pigmeu tecnológico, e sobretudo está longe de ser um Estado pobre.
António Marques Bessa
Jornal O Diabo, n.º 1705, 31.08.2009.
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