14.11.07

Micas, a pupila do senhor ditador

«Micas, a pupila do senhor ditador

Maria da Conceição Melo Rita viveu com Salazar até aos 28 anos. Foi só depois de casar que saiu do primeiro lar salazarista da Nação, no Palácio de São Bento, onde se usaram senhas de racionamento durante a guerra e se fazia a comida em panelas compradas com o dinheiro do próprio ditador (que as escolheu, ele próprio, sem saber alemão, num catálogo de uma empresa alemã).
Todas as noites, dos seis até aos 28 anos de Maria da Conceição, o ditador subia ao sótão onde ficava o quarto da pupila para, antes de ele próprio se recolher, ver se estava tudo bem com Micas e aconchegar-lhe os cobertores.
Para Salazar, Maria da Conceição era um nome muito comprido: passou a chamar-lhe Micas. O jornalista Joaquim Vieira recolheu e enquadrou historicamente as memórias dos 35 anos que Maria da Conceição Melo Rita acompanhou o ditador. Mesmo depois do casamento, as visitas da pupila eram constantes. O filho mais velho de Micas viveria no Palácio de S. Bento até à morte de Salazar.
O retrato de Salazar na intimidade, visto pela sua filha adoptiva, é uma pérola para a compreensão desse fenómeno único no contexto das ditaduras europeias que foi o salazarismo. "Com muita gente a mexer num tacho ninguém se entende", dizia Salazar, que adorava metáforas domésticas, e que um dia confessou à governanta que tratava por "menina Maria": "A menina Maria tem mais facilidade em escolher uma criada do que eu um ministro."
Já se sabe que o pai da Nação era austero e misantropo - mas talvez não se soubesse ainda que comia sempre sozinho, nos pratos e talheres que ele próprio comprara - empacotara a louça do Estado, que seria reservada só a jantares oficiais - deixando a filha adoptiva e a governanta D. Maria remetidas à copa.
Salazar, antigo seminarista, ajudava à missa de todos os domingos em S. Bento. Mas nunca foi visto a comungar: Micas interroga a governanta, que responde que o ditador tinha uma licença especial que o desobrigava da confissão e da comunhão.
O namoro de Salazar com Carolina Asseca é um momento duro para a D. Maria que, aflitíssima com a perspectiva de casamento do ditador pede a Micas um favor: que aproveite o beijo de boas noites que Salazar lhe dava todas as noites no quarto para lhe implorar que não casasse. "Deixa lá isso, dorme, dorme", foi a resposta. De resto, todas as cartas de Carolina eram deixadas à vista das mulheres da casa que as liam com fervor. "Como o senhor doutor nunca passava noites fora, duvido mesmo que tenha havido intimidade física" com Carolina Asseca, escreve Micas.
Com Christine Garnier, a jornalista francesa com quem Salazar, aos 62 anos, viveu um romance (chegou a encarregar o embaixador em Paris, Marcello Mathias, da missão de lhe comprar e entregar um anel) a situação pode ter sido diferente. Micas repara que, no forte do Estoril, durante vários encontros, são corridas "as portadas de madeira do escritório do senhor doutor" que nunca antes estavam fechadas.
A vida de Salazar com Micas faz parte da hagiografia do Estado Novo. Rosa Casaco (o agente da PIDE que comandou o assassinato de Humberto Delgado e fotógrafo nas horas vagas), tira o retrato em que o ditador ensina a tabuada à pupila, que depois ilustrará a manchete de O Século "Como vive e trabalha o sr. dr. Salazar". E o Diário de Notícias é avisado do dia, hora e local do exame de 4.ª classe de Micas: para surpresa da examinanda, aparece-lhe à frente um flash e, no dia seguinte, 26 de Julho de 1941, o DN publica uma reportagem intitulada "Era uma vez uma menina", que noticia o exame e afirma que um "acontecimento tão simples e tão pequeno deve ter chegado para animar com a sua claridade o dia do presidente do Conselho".


Ana Sá Lopes»
In Diário de Notícias, 14.11.2007

1 comentário:

Anónimo disse...

O Camarada Nonas prestou o que se chama Serviço Público!