Na hora da morte de Goulart Nogueira
Um mestre
intemporal
A notícia não surpreendeu ninguém. Todos sabíamos que
Goulart Nogueira não podia resistir por muito mais tempo, acamado havia longos
anos na sua Beira adoptiva.
Conheci-o na década de 80. Encontrei-me com ele aqui e
ali, sobretudo nas tertúlias de Lisboa e do Porto, com Rodrigo Emílio, António
José de Brito, Rui Alvim e outros, que franqueavam a porta ao miúdo que eu era.
Admirava nele o poeta, o doutrinador, o escritor, o tradutor, o ensaísta, o dramaturgo,
o encenador.
Já ouvi dizer que foi um poeta fascista, um
reaccionário, arrumado assim para sempre na estante dos malditos e dos
impronunciáveis. É espantoso como gente responsável pode atrever-se a exame tão
superficial e a conclusão tão ignorante.
Nascido em 1924 em
Belém do Pará, no Brasil,
filho de pai português e mãe brasileira, chega a Portugal com seis anos para
viver com os avós paternos em Campia, cerca de Vouzela. Deixou obra larga e
meritória, a merecer a atenção dos investigadores imparciais.
Tempo
Presente
Poucos se dão conta da importância que assumiu, nas
fileiras nacionalistas, o projecto da Tempo Presente (1959-1961). A revista,
encabeçada por Fernando Guedes, António José de Brito, Caetano de Melo Beirão,
Couto Viana e o próprio Goulart Nogueira, propôs a destino um nacionalismo de
vistas largas, contra o patriotismo rançoso e estreito, que não estima a
afirmação das outras nações.
Aberta a todas as correntes artísticas, foi por
exemplo nas páginas da Tempo Presente que se apresentou pela primeira vez em
Portugal a chamada “Beat Generation”, de Allen
Ginsberg, William S. Burroughs e Jack Kerouac. A
rebeldia desses boémios norte-americanos conciliava-se com o inconformismo
daquela geração vanguardista.
O propósito daqueles rapazes,
quase todos na casa dos 30 e pico, foi claríssimo: num regime minguado de
capacidade criativa, era preciso privilegiar a consideração estética do fenómeno
político. As grandes batalhas ideológicas e políticas vencem-se ou
perdem-se culturalmente — e o
resto é conversa. Tratava-se, pois, de afirmar o primado da produção artística, como sumo sinal de identidade e da vitalidade de qualquer povo.
A Tempo Presente divulgou
correntes estéticas como o dadaísmo, o imagismo, o vorticismo. Trouxe até nós o
concretismo brasileiro, de Décio Pignatari e dos irmãos Haroldo e Augusto de
Campos. Recuperou os fascistas maltratados, de Ezra Pound a Drieu La Rochelle.
Apelou a uma jovem geração para que fosse verdadeiramente radical, no que de
melhor tem a palavra.
Florentino Goulart Nogueira é preponderante na
definição da linha cultural da revista, na qual chegam a colaborar, muito por
sua influência, nomes como Almada Negreiros, Agustina Bessa-Luís, Ruy Belo, Ana
Hatherly, Raul Leal, António Quadros, Agostinho da Silva, Álvaro Ribeiro, José
Blanc de Portugal, Fernanda Botelho, Cabral do Nascimento, Artur Bual, Júlio
Resende e Manuel Cargaleiro.
O
doutrinador
O fascismo de Goulart era o de quem recusava o estúpido
materialismo e o determinismo absoluto, o de quem não queria ser escravo da
economia e do sentido da História. Na sua prosa moderna e verrinosa, insurgia-se
contra os "cautelosos, os temerosos,
os ponderados, os escaldados, os já pesados, os barrigudos, os burocratas, os
comedidos, os medianos, os medíocres, os instalados, os estanhados, os
insípidos, os cúpidos, os lúbricos, os puritanos, os em-ceroulas, os bigodudos,
os dedos mínimos, os pais-de-família (profissionais), os pais-da-pátria
(profissionais), os pais-da-rapaziada (proteccionais), os discursivos, os
financeiros, os banqueiros, os espertinhos, os broncos, os carneiros, os
gafanhotos, os camaleões, os tubarões, os de manteiga, os de banha, os de
ranço, os máquinas de calcular, os técnicos de corporativismo rocinante, os
assentados na engrenagem de corporativismo ronceiro, os muito piedosos, os
catolaicos, os beatíferos, os sempre na cauda, os 'sim, mas...', os estafermos
[…]” (Tempo Presente, n.º 10, Fevereiro de 1960, pág. 85).
Crítico velado do Estado Novo e inimigo figadal da
marcelice, afinfou nos oportunistas, nos rapazes da ideologia “Maria vai com as
outras”, sempre a ver para que lado pendem as coisas, laudatórios do regime que
estiver e da gamela a encher.
Como não fosse homem de meias-tintas, recusava
expressar-se por meias-palavras: “Eu
nunca fui salazarista; e, geralmente, por razões contrárias às dos
oposicionistas gritantes e constituídos; em nome dos meus princípios fascistas
e da consequente observação dos factos.” (Vanguarda, n.º 7, Setembro de
1970, pág. 4).
Fascista autêntico, assumindo as suas ideias sem
vergonha e de cara ao Sol, escreveu violentas diatribes contra a direita
clássica e conservadora.
O poeta
O seu registo poético é próprio e inovador. Sobressai na poesia de Goulart um talento chispante, revulsivo,
com perscrutações semânticas, ontológicas e metafísicas, inclusive esotéricas e
alquímicas, mas sempre numa linguagem pura —
além do escândalo da sua originalidade e dos temas.
Numa época em que os autores se revelam tão numerosos
e inautênticos, aceitadores da moda e da consigna, numa época de valores baralhados
e insultantes, Goulart Nogueira distinguiu-se a uma altitude invulgar. Pudessem
hoje compreendê-lo os críticos rasteiros das gazetas culturais.
Apesar de ter publicado apenas dois livros ântumos de
poesia, “Atlântida” e “Barco Vazio em Rio de Sombra”, além de várias
composições dispersas, a sua obra poética mereceu o exame atento e elogioso de David
Mourão-Ferreira, Jorge de Sena e Tomás de Figueiredo, entre outros. O último considerava-o
mesmo como o maior poeta português depois de Fernando Pessoa.
Mestre
intemporal
Goulart abraçou a cultura, toda a cultura, sem
melindres ideológicos. Foi poeta, declamador excelente, dirigiu jornais e
revistas, traduziu Kleist, Apollinaire,
Strindberg e Brasillach, escreveu páginas notáveis de doutrina, afirmou-se como
crítico e homem do teatro.
Amigo de Luiz Pacheco, trocou com ele variada
correspondência. Numa dessas cartas, que permanecem inéditas, Pacheco dirige-se
a Goulart com ironia terna: “Caro amigo (dos bons velhos tempos
salazaristas)”. Noutra missiva, o autor libertino e
abjeccionista avança deste feitio: “Mano
FLORENTINO: a minha mãe fazia anos hoje. Católico, monárquico e fascista,
acreditas que a alma dela me estará a guardar; monárquico, apostas na lei do
sangue, da hereditariedade (não são, de facto, palavras vãs). E o fascismo, em
Itália, que foi onde existiu, por cá caricatura e torpe, era de início um
movimento para a antiga grandeza romana. Acabou lá e cá, como se sabe […]”
Vale a pena ler e tresler Goulart. Os medíocres hão-de
apor-lhe um labéu qualquer e exigir silêncio sobre a obra portentosa.
Lembrá-lo-ão decerto os seus discípulos da Oficina de
Teatro da Universidade de Coimbra, criada em 1966 e que viria a ser dirigida
por ele, para combater a ditadura cultural de esquerda no meio universitário.
Lembrá-lo-ão também os amigos e camaradas que o viram
penar duros meses na prisão, depois de Abril.
Lembro-o eu aqui nestas páginas como mestre intemporal
do nacionalismo português, na sua forma própria e autêntica de entender e sentir
Portugal. Os gigantes nunca morrem — e Goulart é
um deles.
Bruno Oliveira Santos
Bruno Oliveira Santos
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