RUY ALVIM
A notícia do falecimento do meu amigo, de há dezenas de anos, Ruy Alvim, não me colheu de surpresa. Já desde bastantes dias esperava um desenlace fatal, embora no meu espírito houvesse sempre uma réstea de esperança.
Em Coimbra, para onde fui em 1945, laços de estima me ligaram a Ruy Alvim, laços que não se quebraram através das mais diversas vicissitudes.
Na altura em que me matriculei na velha Universidade, uma parte dos seus alunos aguardava, com fervor, o retorno – fruto do abominável dia V – do caos democrático. Uma outra desejava ardentemente, a consolidação das constituições vigentes, de modo a que não fossemos contagiados pelos males que dominavam, avassaladoramente, além fronteiras – e por isso ansiava pela restauração da Realeza. Mas entre os que, então, se diziam monárquicos existia uma fracção que, seguindo, aliás, as posições de bom número de fundadores do Integralismo Lusitano, se deixava contagiar pela ressurreição das velhas ideologias que a força das armas, macissamente, impusera ao nosso pobre mundo. Ambas as orientações alinhavam em torno de um quinzenário denominado “Mensagem”, entre ambas subsistindo a um equívoco fundamental, mais ou menos disfarçado pelo emprego de um vocabulário formalmente idêntico, conquanto as mesmas palavras fossem usadas para designar realidades, substancialmente, divergentes.
O equívoco desfez-se quando, com o patrocínio de autores como Almeida Braga, Alberto Monsaraz, Hipólito Raposo, apareceu um jornal – “Diário Nacional” – que defendia, estrenuamente, a compatibilidade da monarquia com a democracia (ou seja, achava possibilíssimo o círculo quadrado). Alfredo Pimenta refutava, intransigentemente, nas colunas do semanário “A Nação”, tão absurda doutrina. O director da “Mensagem” – Caetano de Melo Beirão – convidou-o a estender a sua salutar campanha a esse órgão de imprensa. Alfredo Pimenta aceitou com júbilo.
E a cisão latente passou da potência ao acto. Uns tantos colaboradores do quinzenário abandonaram-no, iniciando uma evolução, ou melhor, involução, que terminou com o aplauso à traição abrilina e com a sua inserção no sistema dos partidos, constituindo o inenarrável P. P. M.
Ruy Alvim – é quase inútil dizê-lo – ficou do lado dos monárquicos autênticos, e dessa opção fundamental derivaram bastantes eventos da sua vida sacrificada e agitada.
Perto do fim do curso, fomos os dois chamados a prestar o serviço militar. Na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, Alvim tornou-se conhecido pelo seu bom humor e irreverência, qualidades que, mais tarde, o fizeram ser eleito Presidente da Direcção da Associação Académica e Director da “Via Latina”.
Regressou às fileiras como oficial miliciano, prestando relevantes serviços contra alguns desvios subversivos que começam a despontar nas Forças Armadas. No derradeiro número da revista “Tempo Presente” dirigiu um apelo à juventude no sentido que se erguesse em defesa da integridade do território pátrio, alvo de agressão terrorista.
Após tal revista desaparecer, vítima do seu desassombro e do seu falar claro, que escandalizava os conformistas do sistema, Ruy Alvim não deixou de ocupar lugar desta que, nos corpos dirigentes do Círculo de Estudos Alfredo Pimenta, com menos ressonância infelizmente e mais dificuldades seguia o rumo do “Tempo Presente”.
A seguir… A seguir foi o abandonismo progredindo, travado pela presença de Salazar, até que chegou a hora daquilo que os inconscientes chamaram a primavera política, ou seja, o fim do Estado Novo.
No período de decadência a que aludimos, Ruy Alvim ocupou o lugar de Chefe dos Serviços da Censura. Se nos tivesse legado as suas memórias, o servilismo de certos defensores entusiastas da liberdade de expressão seria, saborosamente, desmascarado. Mas, adiante…
Com a primavera política, ou seja o marcelismo, tudo começou a esbororar-se. O professor Alves das Neves Caetano em textos escritos no Brasil, confessou que expunha os seus projectos de destruição da Pátria portuguesa, a políticos estrangeiros deles recebendo aplauso e incitamento. Internamente não desvendava os intuitos tão claramente, com medos dos chamados ultras. Tal medo levou-o a tortuosas manobras e mentiras, sendo evidentemente ultrapassado por Spínola (criado dos interesses americano) e pelos MFA (criados dos interesses soviéticos) que proclamavam, sem equívocos, querer voltar ao remanso dos quartéis do rectângulo.
Assim sucedeu no 25A, que representou, conforme disse Amorim de Carvalho, n`“O fim histórico de Portugal”, em breve inserido numa federação, com nome de “União Europeia”, sob o pavilhão da democracia obrigatória e do capitalismo desenfreado. Para deixar testemunho do nosso protesto, sem termos grandes esperanças de êxito, mas para obedecermos ao lema “tout est perdu fors l`honneur”, constituímos um pequeno agrupamento – o M. A. P. (Movimento de Acção Portuguesa) em recordação da saudosa Action Française) – a que Ruy Alvim não deixou de dar a sua adesão. O monocular traidor traído, como bom súbdito dos U.S.A., procurou travar a maré comunista, promovendo uma manifestação monstra de apoio, que lhe permitiria defenestrar o triste louco Vasco Gonçalves. Com a falta de habilidade e senso habituais, falhou nos seus propósitos. O MAP que nada tinha a ver com as torpes dissenções inter-abrilinas tornou-se alvo de assalto das forças ditas militares. Alvim e Amândio César, que seguiam tranquilamente para Lisboa, de todo alheios à tontice de Spínola foram detidos e agredidos em Coimbra, conseguindo por sorte escapar para o Porto, onde se acolheram em minha casa.
No mesmo dia transpuseram a fronteira e após breve estadia em Espanha, embarcaram para o Brasil. Vários camaradas passaram também para o país vizinho ou, em nome da liberdade, foram presos arbitrariamente. Eu fiquei, na chamada capital do Norte, aguardando o cárcere que, milagrosamente consegui evitar (sem nada fazer de especial para isso). O Caetano de Melo Beirão ocultava-se no Alentejo.
Alvim permaneceu no Brasil, ao passo que Amândio César regressou ao rectângulo, mal este deixou de ser um manicómio em auto-gestão para se transformar no purulento e nauseabundo pântano actual.
Contra o mesmo passaram a insurgir-se quer o recém-saídos dos calabouços democráticos quer alguns que não experimentaram tão gentil hospitalidade. Agruparam-se em volta de Manuel Maria Múrias, corajoso director do semanário “A Rua” (a propósito, que é feito do livro consagrado à sua memória e que misteriosamente nunca veio à luz?)
Alvim, do outro lado oposto do Atlãntico, comendo por vezes o pão que o diabo amassou, acompanhava com simpatia o nosso esforço, que os mais lúcidos sabiam votado ao insucesso mas que era um imperativo de consciência. Escreveu amargurados poemas, em boa parte, reunidos no volume “Diário Interrompido”, que a crítica bem pensante, prosternada perante os Saramagos e outros magos da ordinarice, desconheceu com olímpico desdém.
Elaborou, também, um estudo sobre “Plínio Salgado e a revolução do Espírito”, destinado a servir de prefácio à edição das obras deste grande escritor, de que saiu uma separata.
Em Novembro de 2000, com o inevitável atraso, teve lugar uma modesta sessão de homenagem à memória de Alfredo Pimenta no quinquagésimo aniversário da sua morte. Ruy Alvim, ainda que residindo já no rectângulo, não podendo estar fisicamente presente, teve, por isso, a gentileza de me pedir que lesse a sua comunicação sobre “Alfredo Pimenta e o Minho”. Os restantes participantes nessa homenagem foram António Manuel Couto Viana, Goulart Nogueira, Carlos Eduardo de Soveral, Rodrigo Emílio, Pinharanda Gomes e eu próprio. Nenhum editor quis dar a público os textos apresentados.
Alvim já contemplava, com nojo, com pasmo e às vezes, com irreprimíveis gargalhadas – os donos deste anárquico canto da Península abusavam, frequentemente do gosto de serem idiotas, - o que se passava no pântano à beira-mar plantado.
Se lhe era possível, comparecia aos jantares que uns poucos nostálgicos irredutíveis – com muito orgulho o afirmámos – recordavam o 28 de Maio e Salazar.
Não o veremos mais, no próximo mês. Ai de nós, a morte chamou-o a si.
Adeus, velho amigo e companheiro, sempre firme e vertical.
Adeus, não. Até breve.
António José de Brito
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