11.5.09

Livro: Norte de L. F. Céline

“(…) mas, a mim, na pedra do meu túmulo ninguém se atreverá a gravar o seu nome… já à minha mãe, no Père Lachaise, riscaram-lhe o nome do túmulo, apagaram-lhe o nosso nome… é o que faz não termos fugido quando chegou a altura, para o sítio certo… veja lá que em La Rochelle tive de resistir ao exército francês que queria a todo o custo comprar-me a ambulância! não era minha!... a mim, que sou a honestidade em pessoa, ninguém me pode comprar absolutamente nada! a ambulância do meu dispensário em Sartrouville… imagine!... trouxe a maldita carripana para o local de onde ela tinha vindo! e as duas avós passageiras com as suas garrafas de tinto, e três recém-nascidos… em perfeito estado, toda aquela cambada!... alguém me dirigiu o mais pequeno agradecimento?... oh, raios, ninguém! você está a imaginar as calúnias? contra mim! contra mim!... tantas que davam para encher uma colónia penal! Vinte Landrus, Petiots e Fualdès…. se eu tivesse vendido a ambulância pelo preço que eles me ofereciam, com os recém-nascidos, as enfermeiras e as velhas, agora estaria bem: herói da Resistência, e com uma estátua das grandes! depois do toque de rendição soar, ah, pobres do meus antepassados!... não há crime que você não tenha cometido! nunca põe o seu pescoço suficientemente a jeito para lhe cortarem as carótidas nojentas!... cobarde!... são milhões a vaiá-lo das bancadas!... tudo isto por causa do meu orgulho presunçoso de trazer a carripana para o sítio de onde ela tinha vindo, porque não me pertencia!... era um bem de Sartouville! vaidade!... se a tivesse deixado aos boches, aos franciús, aos fifis, a quem quer que fosse, ou até aos banhos públicos, todos eles eram compradores, com as avós, as enfermeiras e os recém-nascidos lá dentro! e eu seria um tipo muito respeitado, bem na vida, e não um velho vagabundo na merda…” (p. 16)
“Eu, as minhas bengalas, a Lili, o Bébert, aqui estamos nós feitos turistas… à procura de um hotel!... esta cidade já sofreu bastante… tantos buracos e calçadas levantadas!... engraçado, não se ouvem os aviões… já não se interessam por Berlim?... eu não percebia nada, mas a pouco e pouco dei-me conta… era uma cidade só de cenários… ruas inteiras de fachadas, os interiores tinham ruído, afundados nos buracos… não tudo, mas quase… parece que em Hiroxima está tudo bem mais limpo, ceifado rente… a limpeza através dos bombardeamentos que também é uma ciência, ainda não estava afinada… ali, os dois lados da rua davam uma ilusão… as portas fechadas… e depois também era curioso que nos passeios, todos os escombros, as vigas, as telhas, as chaminés estavam cuidadosamente empilhados… não a monte, de qualquer maneira… cada casa tinha diante da porta os seus destroços, que atingiam a altura em que de um, dois andares… e destroços numerados!... se amanhã a guerra acabasse, de repente, não precisariam de oito dias para repor tudo no seu lugar… em Hiroxima já não conseguiriam fazê-lo, o progresso tem o seu lado mau… ali, em Berlim, oito dias, e voltavam a pôr tudo de pé!... as traves, os algerozes, cada telha já identificados com números pintados a amarelo e vermelho… assim se via um povo com um sentido de ordem inato…. (…) ali naquela triste Berlim, eu via velhos e velhas da minha idade e mais ainda, já nos seus setenta, oitenta anos… até cegos… totalmente dedicados ao trabalho… a levarem tudo para o passeio, a fazerem pilhas à frente das fachadas, a numerarem… os tijolos, aqui! telhas amarelas, ali!... cacos de vidro num buraco, tudo!... nada deixado ao deus-dará!...” (pp. 35/36)

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