21.3.07

O Triunfo da Vontade visto por Bénard da Costa

Der Triumph Des Willens / 1935
O Triunfo da Vontade

O Triunfo da Vontade
Um filme de Leni Riefensthal

Der Triumph Des Willens só uma vez passou em Portugal, no Outono passado na Cinemateca. Antes de 1945, não foi exibido por desinteresse dos exibidores e distribuidores e por relutância da censura que tinha instruções para proibir filmes que puxassem demais para Deus ou para o Diabo, fosse qual fosse a identificação deles com os blocos em guerra latente ou guerra declarada. Depois de 1945, ninguém se atreveu (se se atrevesse, a censura também não deixava). A partir dos anos 60, quando os ânimos estavam mais serenados, não houve ânimo para mandar vir uma cópia. Depois de 1980, a Cinemateca tentou e tentou muitas vezes. Mas ainda existe na Alemanha, uma lei que proíbe aos Arquivos a cedência do filme para o estrangeiro, a não ser devidamente acompanhado e com garantias de que a sessão se destina exclusivamente a historiadores. Como sempre me repugnou exibir filmes com portas fechadas, nunca aceitei a limitação. Limitação que também vem de Leni Riefensthal, que conserva todos os direitos sobre o filme e, apesar dos seus 91 anos, zela vigilantemente sobre o uso da cópias. Sempre que lhe cheira a política recusa. Mas, pela segunda vez no espaço de um ano, a Cinemateca de Viena emprestou a magnífica cópia que vamos ver. Não é a versão integral com 2 horas e 20 que se estreou em 1935 (faltam-lhe 35 minutos). Mas também não é a versão de 40 minutos que é normalmente a mais exibida e a cópia é em 35mm e não em 16mm como a maioria das que circulam. Passo, agora à história do filme, antes de ir ao filme na história.
Leni Riefensthal nasceu a 22 de Agosto de 1902, em Berlim. Estudou pintura e depois dança e como bailarina obteve os primeiros sucessos e a primeira fama em 1924. em 1926, Arnold Fanck – realizador dos chamados “filmes de montanha”, antes de ser um nome proeminente entre os nazis – convidou-a para protagonista do seu Der Heilige Berg onde ele dançava uma expressionista “Dança do Mar”. De 1927 a 1931, apareceu em mais seis filmes, desde uma versão da história de Mayerling (Vertsera, 1928) a muitos mais filmes de montanha. Um acidente cortou-lhe a carreira de bailarina e levou-a para a de realizador. Em 1931, fundou uma companhia de produção própria e com Arnold Fanck co-dirigiu o belíssimo Der Blaue Licht (A Luz Azul) que a Cinemateca deu a ver no grande Ciclo de Cinema Alemão organizado em 1981. O filme foi, à época, um enorme sucesso e ninguém notou, no ano da sua estreia (1932) qualquer parentesco com a ideologia nazi. E Leni Riefensthal acusou muito menos a influência de Fanck do que a do seu co-argumentista: o famoso teórico húngaro Bela Balasz, um dos críticos mais influentes no anos 30 e 40. A Balasz deveu ela a descoberta de Potemkine e do cinema russo e o fascínio pelas teorias de Eisenstein, e sobretudo pelas suas célebres teses sobre a montagem (a montagem dialéctica).
Por mais estranho que possa parecer (mas hoje e com a dupla exibição de ambos os filmes até se percebe melhor) foi em conversas sobre Eisenstein e Potemkine que chamou a atenção de Goebbels, para quem o filme do couraçado era o exemplo cimeiro dos filmes de propaganda com que sonhava. Goebbels apresentou-a a Hitler e, em 1933, pouco depois da chegada dos nazis ao poder, Hitler nomeou-a “Expertfilm” no Partido Nazi. Em 1933 Leni Riefensthal dirigiu a curta-metragem Sieg Das Glaubens (Vitória da Fé). A 3 de Dezembro desse ano, o correspondente do Observer em Berlim, escreveu: “O Chanceler Hitler e todo o governo alemão, incluindo o General Goering, assistiram, ontem à noite, à estreia mundial do filme A Vitória da Fé sobre o Congresso Nazi de Setembro passado em Nuremberg. O filme é uma longa apoteose do espírito de César, com o Senhor Hitler a representar o papel de César, e as tropas o papel dos escravos romanos. É de esperar que este filme venha a ser exibido em todos os cinemas fora da Alemanha, se se quiser perceber o inebriante estado de espírito (“the intoxicating spirit”) que presentemente se vive na Alemanha. No fim da sessão, o Senhor Hitler deu a Leni Riefensthal um ramo de flores”.
Em 1934, Leni Riefensthal fez novo filme de propaganda Tag Der Freiheit (Dia da Liberdade) à glória da Wehrmacht. Hitler voltou a gostar muito e nesse mesmo ano encomendou-lhe uma longa-metragem sobre o Congresso marcado para os primeiros dias de Setembro em Nuremberg. O velho Marechal Hindenburg que, como Presidente da República, convidara Hitler a formar governo em Janeiro de 33, tinha morrido poucos meses antes deixando vago para Hitler o topo do estado (no filme, vê-se e ouve-se Hess a homenageá-lo e a homenagear nele, em sábia apropriação, “todos os nossos camaradas mortos”). A 30 de Junho tinha ocorrido a célebre “noite das facas longas” em que a facção nazi do Capitão Roehm fora dizimada. Desaparecidos “os inimigos internos” (de “direita” ou de “esquerda”) era a hora de mostrar a total unidade do Partido e a sua total obediência ao Führer. Era a hora de dar a ver os impressionantes números da eleição de Agosto de 1934: 95% de eleitores inscritos, ou seja 42 milhões de alemães, foram às urnas. 38 milhões (90 por cento) deram todo o poder a Hitler. Só 5% (cerca de 4 milhões) votou contra.
Nuremberg tinha que ser a apoteose. E essa apoteose tinha de ser encenada (filmada) por forma a esmagar quem quer fosse que duvidasse do “triunfo da vontade”. Da concepção cénica se encarregou Albert Speer, o célebre arquitecto de Hitler. Da concepção fílmica, Leni Riefensthal. A um e a outro foram dados todos os meios e todo o dinheiro.
Leni Riefensthal teve sob as suas ordens 120 técnicos e 30 câmaras de cinema e diz-se que o material impressionado correspondia a 36 horas de filme, (600.000 metros). Montar e organizar esse material foi para ela, como sempre disse, trabalho muito mais ciclópico do que o das imagens. Porque neste filme, aparentemente documental (ou, melhor dizendo, que devia ter a aparência de um documentário), tudo é rigorosamente construído. O programa deste filme (apetecia dizer o seu guião) está contido em dois discursos. Um é a passagem retida do discurso de Goebbels. Que diz ele? Isto: “Que nunca se extinga a chama ardente do nosso entusiasmo. Só essa chama pode iluminar e aquecer a criativa arte da moderna propaganda política. Vinda da profundidade da alma do povo, essa arte deve sempre voltar a ela e retirar dela o seu poder. O poder que se funda nas armas pode ser bom. Mas é sempre melhor e mais gratificante o poder que se ganha conquistando a alma do povo e convertendo-a”. A outra passagem é a da proclamação de Hitler lida, pouco antes, pelo gauleiter da Baviera, Adolf Wagner: «Não há revolução permanente que não conduza à anarquia. Tal como o mundo não pode viver sempre em guerra, as nações não podem viver sempre em revolução. Nada de grande nesta terra, nada que tenha durado e dominado durante milénios, foi construído em poucas décadas. Quanto mais alta é uma árvore, maior foi o tempo que demorou a crescer. Tudo o que precisa de séculos para se impor, precisará de séculos para se fortalecer. Agora começa a forma de vida que moldará a Alemanha nos próximos mil anos. Não haverá outra revolução na Alemanha nos próximos mil anos”.
É sobre gente que acreditava tais coisas e para gente que devia acreditar em tais coisas que Leni Riefensthal construiu o seu filme. Ele devia ser, acima de tudo, uma peça da nova arte de que fala Goebbels, essa que devia conquistar, para sempre, o coração do povo.
Por isso, tudo, em Der Triumph Des Willens (incluindo o próprio Hitler) está subordinado à encenação. Não foi para decisões políticas, nem mesmo por razões políticas, que uma tal multidão se reuniu em Nuremberg. Se aquelas centenas de milhares de pessoas estão ali, é porque ali se ia fazer um filme. Como escreveu Marshal Lewis “parece até que o grande estádio de Nuremberg e que os enormes auditórios só foram construídos para que as câmaras se pudessem mover neles.”
Na aparência, Der Triumph Des Willens é o registo dos seis dias do 6.º Congresso do Partido Nazi. Na realidade, é a ficção de um gigantesco estúdio de cinema, onde se reconstruiu uma cidade (Nuremberg) onde se agrupam centenas de milhares de figurantes, onde se reuniu um cast de vinte ou trinta “intérpretes de luxo” e onde se ilumina “the biggest star”: Adolf Hitler.
O portento deste filme – e de outros de Leni Riefensthal – é que estas duas ordens de imaginário se fundem em completa harmonia, por forma a que o espectador nunca se interrogue onde começa uma e onde acaba outra.
Nos filmes “clássicos”, quando um espectador demasiado se identificava, era costume haver outro – mais distante – que lhe recordava que o que ele estava a ver era só um filme. Em Der Triumph Des Willens (e daí todas as reacções que suscitou e suscita) ninguém se deixa convencer que seja só isso. E, no entanto, mais do que em todos os outros, ele é exactamente isso. O maior paradoxo de Der Triumph Des Willens é o de, sendo o filme mais filme, ser também o que mais suscita todas as instâncias do real. O maior paradoxo e a maior grandeza.

João Bénard da Costa

Realização: Leni Riefensthal / Fotografia: Sepp Allgeier, Karl Attenberger e Werner Bohne / Direcção Técnica: Walter Traut / Supervisão Arquitectónica: Albert Speer / Direcção Musical: Herbert Windt / Música: Herbert Windt e excertos de Wagner (Prelúdio da ópera “Os Mestres Cantores de Nuremberga», “Idílio de Siegfried” da obra “Siegfried”) e de canções e hinos nazis (“Horst Wessel”, Ich hatte ein Kamerad”) / Montagem: Leni Riefensthal / Discursos ou intervenções (por ordem de aparição): Rudolf Hess, Wagner, Rosenberg, Dietrich, Todt, Reinhardt, Darré, Streicher, Ley, Frank, Goebbels, Hierl, von Schirach e Adolf Hitler.

Produção: NSDAP (Partido NacionalSocialista dos Trabalhadores Alemães) / Cópia: do Ostereichs FilmMuseum (Viena), 35mm, preto e branco, sem legendas (legendagem electrónica em português) / Duração: 105 minutos / Duração da versão original: 140 minutos / Estreia mundial: Berlim, 7 de Março de 1935 / Inédito comercialmente em Portugal / Apresentado pela primeira vez em Portugal, pela Cinemateca Portuguesa a 28 de Setembro de 1993.


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Texto de apresentação feito para o ciclo “100 filmes + 78”, organizado pela Cinemateca Portuguesa.
O filme foi apresentado pela segunda vez a 26 de Abril de 1994.



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