25.4.08

O 25 de Abril por Manuel Maria Múrias

COMEMORAR A TRAIÇÃO, A VERGONHA E A COVARDIA

«As comemorações do 25 de Abril tiveram várias vantagens. Em primeiro lugar permitiram que os mais moços se apercebessem bem da infâmia; em segundo lugar porque, apesar da propaganda desenfreada, contribuíram bastante para desmistificar a vergonhosa revolução. Cada um dos seus actores dizendo enormidades, a direita ripostando valentemente. Comunistas e socialistas metendo a viola no saco durante as discussões, para irem falar sozinhos para onde os não contradizem.
Acabou-se com o mito terrorífico da P.I.D.E. O inspector Óscar Cardoso, sem receios e com orgulho, calou sobranceiramente o desgraçado do Tengarrinha e o pobre do Sousa Castro, desmentindo-os sem apelo nem agravo. A P.I.D.E. foi uma polícia como as outras, tão dura e tão bruta como as demais. Não se encontrou uma prova que negasse a valentia, o patriotismo e a honradez da maioria dos seus agentes. Durante dezenas de anos perseguiu implacavelmente os comunistas, os conspiradores, os desertores, os traficantes de droga e os proxenetas internacionais. Prendeu assassinos como o Francisco Martins Rodrigues, ladrões como o Palma Inácio, desertores como o Manuel Alegre, bombistas como João Roque. Cometeu excessos? Com certeza. Não se apurou todavia, nada de tão violento, de tão terrorífico ou de tão ordinário como foi a acção do COPCON ao longo dos anos de 74/75, nem nada que se possa compara às infâmias praticadas no Porto pela miserável Corvacho. Os tribunais que, um a um, julgaram os homens da P.I.D.E. só condenaram uma a uma pena pesada. Os outros sentenciados a alguns dias de prisão (já largamente cumpridos antes dos julgamentos) foram condenados porque uma lei com efeitos retroactivos pelo simples facto de terem pertencido à P.I.D.E. e, evidentemente defendido Portugal contra a canalha que hoje ainda nos governa.
Quanto à descolonização ficámos também conversados. Na aflição das desculpas, os abrileiros tentam desesperadamente atirar as culpas para cima de Salazar (se se tivesse descolonizado mais cedo...) ou procuram achar nos eventuais intentos descolonizadores de Marcello Caetano a prova da sua razão. Deliberadamente esquecem que antes e depois da sua descolonização todas as outras se afundaram e continuam a afundar-se no sangue e nos ódios tribais; a maioria das populações da África Negra vive ainda na Idade da Pedra; abandoná-las sozinhas a instituições estatais mais ou menos europeias, dominadas por calcinhas foi entregá-las ao genocídio, à corrupção e à inépcia infantil de uns mulatos semi-civilizados alcandorados ao poder.
Em relação ao desenvolvimento económico retrogradámos para os índices de 1962. Caminhamos com rapidez para a destruição da indústria e para o fim da agricultura. Diante de qualquer crise internacional, sem Ultramar, sem marinha mercante, sem dinheiro, crivados de dívidas, diminuída de forma catastrófica a produção nacional — corremos o risco de morrer de fome e da desordem que, inevitavelmente trará consigo a intervenção espanhola.
A ruína de Portugal é um facto atestado pela maioria dos intervenientes dos vários talk-shows com que as televisões nos ensafuaram o juízo nos últimos tempos. Desde a esquerda aparvalhada à direita amaricada, ninguém se atreveu a negar a realidade. Como girândola final, para além do ridículo da sessão solene no Largo do Carmo, explodiu a polémica entre o Spínola e o Costa Gomes insultando-se mutuamente nas páginas do «Diário de Notícias». Os marechaloides não pouparam amabalidades. Para Spínola, Costa Gomes é um traidor nato; para Costa Gomes o Spínola é um esquizofrénico. Entre a traição nata do Gomes e a esquizofrenia inata do Spínola, Portugal desgraçou-se.
De todos os personagens do 25 de Abril, Costa Gomes é, talvez, o mais complicado. Traiu — é verdade. A sua traição, todavia, é muito mais provocada pela imbecilidade e traição do Spínola do que, propriamente, pela sua vontade de trair. Gomes é levado pelas circunstâncias enquanto Spínola foge. Costa Gomes fica para não perder o lugar, mas também para evitar males maiores. Que teria sido de Portugal se Costa Gomes, como Spínola, tivesse fugido em 74 e em 75, deixando-nos entregues às fúrias epilépticas do Vasco Gonçalves e do mefás?
Guiado pela vaidade, o antigo governador da Guiné, ao contrário de Costa Gomes, embarca na primeira frioleira que lhe propõem os acólitos. Primeiro em 28 de Setembro de 1974, aceita como boa a impossível manifestação da maioria silenciosa com a qual pretendia fazer um golpe de estado; depois, em 11 de Março de 1975, estimula a sublevação dos páraquedistas aquartelados em Tancos, para depois outra vez fugir, abandonando com o rabinho entre as pernas e o monóculo no olho, quantos contavam com ele.
Nos primeiros momentos da sua efémera glorieta de 74 Spínola não parece ter-se apercebido de que não dispunha de autoridade. Ronceiro de entendimento e, por pouco, iletrado, baldo de qualquer senso moral, o generaloide do monóculo vivia ensimesmado na sua estulta fesporrência. Nem uma vez lhe relampejou na ténue cabeça poder ser desprezado pelos «rapazes» do M.F.A. Era o «maior» — segredava-lhe a presunção. Os outros eram menores — e, enquanto os comunistas se iam, apoderando dos manípulos da governação ele entretinha-se a pilotar a barca do estado, sem atentar que deixara de haver estado. Rapidamente se esvaneceram todos os vão sonhos de grandeza que acalentara na Guiné enquanto Governador da província.
Spínola, já em 1968, era considerado nos meios ultramarinistas como um sujeito ininterruptamente tonto, vaidoso como um pavão, ambicioso e perigoso por ser azoinado da cabeça. Dos secretos dinheiros da província que podia gastar sem o visto do Tribunal de Contas, dispendeu muitos milhares em propaganda pessoal, procurando impôr-se à opinião pública como um militar da estirpe de Rommel, de MacArthur, do Mousinho ou, ao menos, do Eric von Stroheim. Dizia ter lido relatórios do Mousinho e aspirava pelo seu Marracuene, pelo seu Chaimite, com a correspondente entrada triunfal em Lisboa no alto duma quadriga, coberto de loiros, o Amílcar Cabral algemado de pés e mãos como acontecera ao Gungunhana. Queria ser Presidente da República. Suspeitava que Marcello Caetano lhe acarinhava as ambições. Para chegar a Belém e ter mais uma estrela na manga do dólman, seria capaz de matar a mãe.
Atingira o generalato porque Salazar o impusera em Conselho de Ministros, recordado dos tempos em que o pai do «herói» fora seu secretário, e duma carta amanteigada em que o homenzarrinho lhe escrevera em 61, depois do gorado golpe de Botelho Moniz e Costa Gomes. Chegara a Governador da Guiné nos últimos tempos decadentes de Salazar, depois de lhe ter sido negado o Governo Geral de Angola.
Desembarcado em Bissau, poucos meses antes de Salazar ser demitido, não precisou de muito tempo para verificar que o seu Chaimite tinha sido chão que dera uvas. Em Moçambique, no final do séc. XIX, os vátuas, armados e financiados pelos rodesianos, lutavam de cara descoberta; ali, no meio de pântanos e picadas enlameadas, os turras, armados pelos soviéticos, batiam e fugiam. Fugir é a táctica suprema do guerrilheirismo — e não por medo, não — por inteligência. Guerrilheiro que não sabe fugir não dura um piscar de olhos — e o Spínola não sabia fazer aquela Guerra que não vinha explicada nos manuais da Escola do Exército. Nem a queria fazer. O que queria era a Campanha da Rússia. O que desejava era Austerlitz, o Almeida Bruno e o António Ramos feitos duques no amanhecer encarniçado da vitória. O que ambicionava era vencer Iena, ganhar Friedland, atravessar os Alpes no dorso dum elefante. Sofria de caprolália. Faltava-lhe um rim. Só bebia água do Luso e comia galinha cozida.
Quando no princípio de 1972 um advogado do Porto, especulador bolsista, o dr. Francisco de Sá Carneiro o convidou para se candidatar à Presidência da República recusou, convencido de que Marcello Caetano o levaria a Belém. Quando o Presidente do Conselho de Ministros resolveu fazer recandidatar o Almirante Américo Thomaz, sentiu-se traído. Resolveu, então trair a Pátria fomentando o descontentamento corporativo dos capitães que começava a ronronar.
Chegado a Belém, cavalgando o M.F.A., ainda tentou dissolver e atraiçoar os capitães, e vigarizar Costa Gomes; mas, enganado pela própria jactância, acabou no exílio. Arranjara mais uma estrela no dólman. Destruíra Portugal.
Graças aos Spínolas, aos Costa Gomes aos Soares, aos Sás Carneiros, aos Freitas do Amaral e a muitos outros, nós somos hoje um estado exíguo na iminência da dissolução. Ao comemorar-se o 25/A comemora-se a estupidez e a traição. Só quando nos livrarmos desta sarna fulurenta poderemos tentar ressurgir.»
Manuel Maria Múrias
In Agora!, n.º 6, pág. 3, Junho/Agosto de 1994.

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